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de Janeiro de 2018
A
pobreza não é apenas falta de dinheiro - existe uma interação com
as demandas da sociedade de mercado para moldar a vulnerabilidade das
pessoas ao trabalho forçado.
É
empiricamente indiscutível que a vulnerabilidade ao trabalho forçado
é moldada pela pobreza.[1,
2,
3]
Este
capítulo se baseará em pesquisas de vários setores e regiões do
mundo para ilustrar como a coerção do mercado interage com a
pobreza para criar uma oferta de pessoas vulneráveis ao
trabalho forçado.
Pobreza
e Mercado
A
verdade fria e cruel das sociedades de mercado é que você precisa
de riqueza - ou, mais precisamente, de dinheiro - para atender às
necessidades da vida e, assim, sobreviver.
Se
você não tem dinheiro, e ninguém para lhe proporcionar comida,
água, remédios, abrigo e outras coisas básicas, você vai morrer.
Essa é a "mão invisível" do mercado em ação. Por falta
de dinheiro, grandes parcelas da população mundial nunca gozam do
poder efetivo de dizer não à coerção ou à exploração, e são
sistematicamente vulneráveis ao trabalho forçado.
Antes
de aprofundar os dados, é importante ficar claro que este não é um
estado natural das coisas. Nem é uma consequência acidental, mas
inevitável, da globalização e do crescimento econômico. Em vez
disso, a pobreza - juntamente com a perpetuação das relações
trabalhistas exploradoras - está escrita no próprio DNA do
capitalismo global.[4]
Já
exploramos essa teoria no Capítulo
2
, e demos o exemplo do trabalhador rural que submete-se à relação
de servidão, para ilustrar como as sociedades de mercado obrigam as
pessoas a aceitarem o trabalho exploratório, priorizando as
necessidades de sobrevivência a curto prazo sobre a segurança
econômica de longo prazo. No atual capítulo, forneceremos mais
exemplos da interação entre pobreza e trabalho forçado para
ilustrar como os mercados mundiais e nacionais contam com - e
perpetuam - o fornecimento de pessoas vulneráveis à
exploração.
Olhando
para um contexto ampliado
Em
2015, a OIT estimou que mais de 75% da força de trabalho global
estava em trabalho temporário, informal ou não remunerado, o que
significa que apenas um quarto dos trabalhadores têm a segurança de
contratos permanentes.[5]
Quatro
em cada dez jovens trabalhadores estão desempregados, ou trabalham mas vivem na pobreza,[6]
enquanto
que em 2014, mais de 200 milhões de pessoas estavam completamente
desempregadas.
Isso
significa 31 milhões a mais do que antes do início da crise
financeira global em 2008,[7]
Expectativas
apontavam que esse número aumentaria ainda mais.[8]
De
fato, entre 1981 e 2008, o número de pessoas vivendo com US $ 1,25 a
US $ 2 por dia, duplicou em todo o mundo.[9]
Tomados
em conjunto, essas estatísticas mostram que as fileiras dos
"trabalhadores pobres"[10]
estão
em constante expansão. Num contexto em que os lucros das empresas alcançaram seus níveis mais altos em quase um século,[11]
a
maioria dos trabalhadores do mundo não tem a certeza de que
ganharão, em seus trabalhos, o suficiente para viver, e quase metade
dos jovens trabalhando no mundo recebem próximo da renda mínima de
segurança. Tudo isso leva à seguinte questão: por que a
pobreza é tão resiliente diante de uma riqueza sem precedentes?
A
reestruturação das economias globais e nacionais nos moldes das
políticas neoliberais (conforme descrito no Capítulo
3)
é uma parte importante da resposta. Durante as últimas quatro
décadas, a reestruturação neoliberal separou milhões de pessoas
dos hemisférios ao sul do globo terrestre de seus meios de
subsistência, ao mesmo tempo que cortou os mecanismos de proteção
social com os quais tais famílias contavam.12
13
Despojados
e abandonados pelo estado, tiveram poucos recursos para resistirem a uma integração em termos desiguais, e muitas vezes altamente
coercitiva, numa economia monetária.
Em
outras palavras, a necessidade intensificada de obter dinheiro para
garantir a sobrevivência despeja milhões de pessoas no mercado de
mão de obra, mas, por serem pobres, não possuem nenhum poder para
moldarem as próprias condições de trabalho. Dessa forma,
sujeitam-se às relações perigosas de trabalho, arriscadas,
inseguras ou mal remuneradas, pois é a única maneira de atender as
necessidades urgentes.
Incorporação
adversa
Embora
o entendimento predominante sobre a pobreza, dentro do pensamento
econômico atual, é de que seja "residual" - conseqüência
de exclusão da economia de mercado - a pesquisa mostra que se pode
incluir alguém no mercado de trabalho e ainda
sim,
esse indivíduo continuar muito pobre.[14]
Na
verdade, para muitas pessoas, a inclusão piora suas condições,
além de as colocar em risco.
Por
exemplo, o mapeamento do trabalho forçado, feito por Nicola Phillips
e Leonardo Sakamoto no setor de gado do Brasil, mostra que aqueles
submetidos a esse tipo de atividade não são, necessariamente, os
mais pobres. Para eles, algumas proteções sociais ainda existem. Em
vez disso, os que incorrem mais em riscos estão ganhando um pouco
acima do limite de renda para requererem proteção social e,
portanto, são
quase exclusivamente
dependentes do rendimento do trabalho para sobreviverem.[15]
As
pessoas flagradas nessa situação são normalmente chamadas de
"trabalhadores pobres" e, como mencionado acima, seus
números estão crescendo.
Phillips
descreve situações como a que ela e Sakamoto observaram no Brasil
como "incorporação adversa".[16]
O
ponto de vista central deste conceito é que quando as pessoas são
obrigadas a empreender trabalho assalariado em termos ruins, isso
pode contribuir para a pobreza e a vulnerabilidade, pois as impedem
de acumularem riqueza ou alcançarem uma segurança econômica de
longo prazo.
A
dinâmica da incorporação adversa é circular, o que significa que,
enquanto a pobreza vulnerabiliza as pessoas à exploração, essa
exploração também reforça a incapacidade de escapar da
pobreza.[17]
O
uso de crianças para produzir roupas em ambientes baseados em casas,
na Índia, demonstra como isso funciona. Uma pesquisa realizada por
Phillips mostra que, em uma amostra de 201 famílias, quase 70%
usaram crianças para cumprir ordens de trabalhos dos fabricantes de
roupas e, na maior parte, as crianças receberam pouco ou nenhum
dinheiro por tal atividade.[18]
Este
sistema de produção terá efeitos imediatos e de longo prazo. Ao
trabalhar nesses pedidos agora, as crianças provavelmente comerão
amanhã. No entanto, a natureza auto-forçada de sua incorporação
adversa, significa que trabalhar agora tornará menos provável que
obtenham melhor trabalho no futuro.
Ao
priorizar a sobrevivência a curto prazo sobre a segurança a longo
prazo - quando fazer o contrário seria extremamente difícil, se não
letal -, também renunciam à escolaridade ou a outras oportunidades
que fortaleceriam seu poder de barganha no mercado de trabalho. Isso
os impedem de "aprimorarem-se" para perspectivas de
empregos mais qualificados, seguros e melhor remunerados, e só piora
o atual estado de pobreza.[19,
20]
O
caráter "multidimensional" da pobreza
A
experiência da "pobreza" não pode, portanto, ser reduzida
apenas à falta de dinheiro. A pobreza é "multidimensional",
como a professora de economia Sabina Alkire deixou claro, o que
significa que aqueles que estão na base da escala sócio-econômica
são estatisticamente mais propensos a enfrentarem um conjunto de
desvantagens que se reforçam mutuamente, numa combinação que
perpetua tal estado de destituição.[21]
Incluem
saúde precária, saneamento deficiente, insegurança alimentar ou
falta de educação. Todas podendo interagir com a falta de dinheiro
para aumentar a vulnerabilidade de um indivíduo ao trabalho forçado.
Para
tomar apenas um exemplo quantitativo, um estudo multi-país da OIT
que examina os antecedentes das vítimas formalmente identificadas do
trabalho forçado, descobriu que aqueles que são originários de
famílias com precariedade alimentar, ou casas que sofreram
recentemente uma queda acentuada na receita, são muito mais
propensos a terminar em situações de trabalho forçado do que
outras.[22]
No
Nepal, por exemplo, apenas 9% dos trabalhadores forçados
identificados vieram de famílias com alimentação suficiente, em
contraste, 56% vieram de famílias com insegurança alimentar.[23]
"Aqueles
que estão na base da escala sócio-econômica são estatisticamente
mais propensos a enfrentarem um conjunto de desvantagens que se
reforçam mutuamente, que se combinam para perpetuar sua
destituição."
A
educação é outro bom exemplo do aspecto multidimensional da
pobreza. As pessoas monetariamente pobres são mais propensas à uma
educação ruim, porque são obrigadas a priorizar a sobrevivência a
curto prazo, em detrimento de um longo treinamento formal. Os
trabalhadores infantis que produziam roupas na Índia demonstraram
isso na seção anterior. A falta de educação, por sua vez, reduz o
poder de barganha no mercado de trabalho, tornando mais provável que
os únicos serviços em oferta irão ocorrer com condições
precárias.[24]
Os
dados de uma série de estudos mostram agora uma forte correlação
entre analfabetismo, ou baixos níveis de escolaridade, e a
probabilidade de ser submetido ao trabalho forçado. No Brasil, por
exemplo, quase 70% dos trabalhadores identificados pelo governo como
"escravos" entre 2003 e 2009 eram analfabetos ou tinham no
máximo quatro anos de escolaridade,[25]
enquanto
na Armênia, na Geórgia e na República da Moldávia, os
trabalhadores forçados foram encontrados em agregados menos educados
do que os "livremente empregados".[26]
A
escravidão da dívida e os muitos rostos da pobreza
O
papel da pobreza na criação de contingentes crescentes de pessoas
vulneráveis ao trabalho forçado, fica muito evidente no caso
das dívidas. As dívidas, como qualquer um que já as contraiu sabe,
podem ser um poderoso mecanismo punitivo.[27]
Empréstimos
ou adiantamentos - juntamente com outras medidas, como a retenção
de salários - são frequentemente utilizados para controlar e coagir
os trabalhadores. Nos países mais ricos, isso afeta os trabalhadores
migrantes que contraem grandes empréstimos para financiarem suas
viagens, e se encontram sem opção, a não ser trabalhar sob
contratos altamente exploratórios para reembolsar as dívidas
contraídas.[28,
29,
30,
31]
Nos
países mais pobres, a dívida captura e castiga os trabalhadores
pobres que não têm acesso a crédito barato e, portanto, não podem
absorver eventuais choques econômicos.
Relatórios
da Verité sobre o setor açucareiro da Guatemala, a indústria do
óleo de palma no Equador, e a produção de bens eletrônicos na
Malásia fornecem mais evidências de como a interseção entre
dívida, retenção de salários e práticas exploratórias de
recrutamento aumentam a vulnerabilidade dos trabalhadores ao trabalho
forçado.[32,
33,
34]
Na
Malásia, 28% dos 501 profissionais da área de eletrônicos estavam
em situações de trabalho forçado, e mais de 80% relataram pagar
taxas excessivas no processo de recrutamento. Na Guatemala, a Verité
descobriu que a retenção de salários e refeições era uma prática
punitiva comum, com o objetivo de assegurar que as quotas de produção
fossem atendidas pelos trabalhadores agrícolas do setor açucareiro.
Outra pesquisa encontrou práticas igualmente punitivas sendo usadas
em outros lugares, como mostra o trabalho de Ben Richardson nos
canaviais do Brasil,[35]e
confirmou a importância da dívida para manter os trabalhadores sob
controle.
Muitas
pesquisas também foram feitas sobre a escravidão da dívida
relacionada à área da saúde. Normalmente, as despesas com saúde
são um grande fardo em países onde a cobertura dessa necessidade é
pobre e / ou não é fornecida universalmente. Para piorar as coisas,
nas áreas rurais onde o dinheiro é escasso, o crédito pode ser
excepcionalmente caro. Essa combinação muitas vezes leva à
escravidão da dívida, porque quando um membro da família precisa
de uma atenção médica urgente, a única opção disponível é,
geralmente, que outro membro da família tome um empréstimo contra a
garantia de sua futura força de trabalho.[36,
37]
Em
suma, a pobreza não é apenas falta de dinheiro. É uma teia de
desvantagens correlacionadas e que se reforçam mutuamente,
interagindo com as demandas da sociedade de mercado para moldar a
vulnerabilidade das pessoas ao trabalho forçado. Entretanto, a
história não pára por aí, posto que ainda temos que responder a
questão de "por que algumas pessoas são mais propensas a estar
em situações de pobreza do que outras." A identidade e a
discriminação desempenham enormes papéis na determinação de quem
aparece no topo, e é para isso que nos voltamos.
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