segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

Tradutores & Intérpretes: os facilitadores não reconhecidos do mundo - Translators are the unacknowledged facilitators of the world | The Economist


e, assim como os intérpretes, raramente recebem o crédito que lhes é devido

Uma tradução errada colocou robôs em Marte? 

Em 1877, Giovanni Schiaparelli, um astrônomo italiano, usou seu telescópio de última geração para visualizar e descrever o que chamou de “canalido planeta vermelho. Os tradutores ingleses não atentaram na descoberta para um termo que acabou sendo traduzindo como “canals”. Seguiu-se um frenesi de especulações de que Marte poderia ser habitado, o que deixou uma marca profunda na imaginação humana. Até hoje, “marciano” é sinônimo de vida alienígena.

Mas a palavra italiana também poderia ser traduzida como “channels”. O que Schiaparelli quis dizer? Em alguns escritos ele teve o cuidado de desencorajar conclusões taxativas sobre a vida em Marte; em outros, acabou por encorajar exatamente tais conclusões. É quase como se canali o deixasse ter “canals” e “channels” em sua mente ao mesmo tempo.

A história é contada em “Dancing on Ropes”, o novo livro de Anna Aslanyan sobre os papéis de tradutores e intérpretes em momentos críticos da história. Está cheio de histórias vivas como a dos canais de Schiaparelli.  A Sra. Aslanyan é, ela mesma, tradutora e intérprete (no jargão da profissão, o primeiro trabalha por escrito, o último com a fala) e conta com experiência prática e de arquivo. A autora deixa o leitor com um respeito reverente pela tarefa do tradutor.

O ideal é que os intérpretes sejam invisíveis e duas pessoas que não compartilhem um idioma sentirão que estão conversando diretamente. Mas esse ideal é virtualmente inatingível. Os palestrantes cortam seus próprios intérpretes. Os ouvintes são rudes com eles, como se os intérpretes (e não o interlocutor real) tivessem dito algo questionável. O pobre linguista pode, portanto, ser tentado a limpar ou suavizar um comentário rude.  A Sra. Aslanyan relata algumas histórias divertidas do intérprete russo para Silvio Berlusconi, o obsceno ex-primeiro-ministro da Itália.

Em “O Jogo da Linguagem”, Ewandro Magalhães, intérprete brasileiro, descreve como, nos julgamentos de Nuremberg, pequenas cabines conectadas com fios telefônicos foram usadas pela primeira vez para interpretação em vários idiomas. A equipe tinha um dia de folga em três, e os turnos eram limitados a 45 minutos. Mesmo assim, disse uma intérprete, quatro meses em Nuremberg a fizeram se sentir dez anos mais velha. Talvez apenas os otomanos, que fizeram do "dragomano" um trabalho poderoso - o grande dragomano era simultaneamente vice-ministro das Relações Exteriores - deram aos intérpretes o respeito que merecem.

A tradução é diferente: geralmente solitária, aparentemente mais tranquila, mas, agora, sob tremenda pressão econômica. Na era digital, todos competem com todos e os compradores muitas vezes simplesmente aceitam o lance mais baixo (ou o Google Translate). O trabalho literário que não pode ser feito por um empreiteiro sem rosto ou por uma máquina pode nem sempre pagar as contas, mas pelo menos fornece estímulo. Anna Aslanyan recorda a tentativa de transpor o russo falado na zona rural da Ucrânia para um inglês carregado nos mesmos tons; depois que ela e um colaborador consideraram e rejeitaram uma inflexão escocesa, tentaram com fragmentos do inglês bem interiorano. Desde 2016, os supervisores do International Booker Prize for Fiction dividem o prêmio em dinheiro igualmente entre os autores e seus tradutores.

Aslanyan diz que um erro de tradução também desempenhou um papel no bombardeio atômico americano sobre o Japão em 1945. Um comunicado oficial informava que os japoneses iriam “mokusatsu” a Declaração de Potsdam, que apelava à rendição do Japão. O verbo pode significar coisas como “não comentar sobre” e “matar com silêncio”, mas também “tratar com desprezo silencioso”. Os americanos se inclinaram para a última interpretação - um insulto desafiador - ajudando a selar o destino de Hiroshima.

Os devotos do Esperanto, uma língua artificial, há muito esperavam que a compreensão promovesse a paz entre os povos. Douglas Adams, autor de “O Guia do Mochileiro das Galáxias”, satiricamente assumiu a posição oposta. Em sua fantasia, o Babel Fish - que, uma vez preso ao ouvido, fornece instantaneamente a tradução perfeita de todas as línguas - é responsável por mais guerras do que qualquer outra coisa na história.

Mas o comentário mais eloquente sobre a tradução vem de José Ortega y Gasset, filósofo espanhol citado por Aslanyan. Duas palavras em duas línguas nunca são traduções exatas uma da outra, disse ele. Mais do que isso, porém, duas pessoas nunca querem dizer a mesma coisa com a mesma palavra (com a possível exceção de alguns termos científicos). A tradução, portanto, é um esforço “utópico”, um ato impossível de leitura perfeita da mente. Isso não significa que não deva ser tentado - mas aqueles que tentam devem ser “bons utópicos” que sabem que nunca terão sucesso.

Este artigo foi veiculado na seção Books & Arts da edição impressa com o título "Only translate"

Fonte: Translators are the unacknowledged facilitators of the world | The Economist

Books & arts

Edição de 19 de junho de 2021

Tradução: Eduardo Vargas

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