segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

Poverty - A vulnerabilidade da pobreza e a questão dos trabalhos forçados

Ilustração por  Carys Boughton(CC BY-NC 4.0)

Disseminando conhecimentos - Exercícios de tradução

10 de Janeiro de 2018
A pobreza não é apenas falta de dinheiro - existe uma interação com as demandas da sociedade de mercado para moldar a vulnerabilidade das pessoas ao trabalho forçado.

É empiricamente indiscutível que a vulnerabilidade ao trabalho forçado é moldada pela pobreza.[1, 2, 3] Este capítulo se baseará em pesquisas de vários setores e regiões do mundo para ilustrar como a coerção do mercado interage com a pobreza para criar uma oferta de pessoas vulneráveis ​​ao trabalho forçado.


Pobreza e Mercado

A verdade fria e cruel das sociedades de mercado é que você precisa de riqueza - ou, mais precisamente, de dinheiro - para atender às necessidades da vida e, assim, sobreviver.
Se você não tem dinheiro, e ninguém para lhe proporcionar comida, água, remédios, abrigo e outras coisas básicas, você vai morrer. Essa é a "mão invisível" do mercado em ação. Por falta de dinheiro, grandes parcelas da população mundial nunca gozam do poder efetivo de dizer não à coerção ou à exploração, e são sistematicamente vulneráveis ​​ao trabalho forçado.
Antes de aprofundar os dados, é importante ficar claro que este não é um estado natural das coisas. Nem é uma consequência acidental, mas inevitável, da globalização e do crescimento econômico. Em vez disso, a pobreza - juntamente com a perpetuação das relações trabalhistas exploradoras - está escrita no próprio DNA do capitalismo global.[4]

Já exploramos essa teoria no Capítulo 2 , e demos o exemplo do trabalhador rural que submete-se à relação de servidão, para ilustrar como as sociedades de mercado obrigam as pessoas a aceitarem o trabalho exploratório, priorizando as necessidades de sobrevivência a curto prazo sobre a segurança econômica de longo prazo. No atual capítulo, forneceremos mais exemplos da interação entre pobreza e trabalho forçado para ilustrar como os mercados mundiais e nacionais contam com - e perpetuam - o fornecimento de pessoas vulneráveis ​​à exploração.

Olhando para um contexto ampliado

Em 2015, a OIT estimou que mais de 75% da força de trabalho global estava em trabalho temporário, informal ou não remunerado, o que significa que apenas um quarto dos trabalhadores têm a segurança de contratos permanentes.[5] Quatro em cada dez jovens trabalhadores estão desempregados, ou trabalham mas vivem na pobreza,[6] enquanto que em 2014, mais de 200 milhões de pessoas estavam completamente desempregadas.

Isso significa 31 milhões a mais do que antes do início da crise financeira global em 2008,[7] Expectativas apontavam que esse número aumentaria ainda mais.[8] De fato, entre 1981 e 2008, o número de pessoas vivendo com US $ 1,25 a US $ 2 por dia, duplicou em todo o mundo.[9]

Tomados em conjunto, essas estatísticas mostram que as fileiras dos "trabalhadores pobres"[10] estão em constante expansão. Num contexto em que os lucros das empresas alcançaram seus níveis mais altos em quase um século,[11] a maioria dos trabalhadores do mundo não tem a certeza de que ganharão, em seus trabalhos, o suficiente para viver, e quase metade dos jovens trabalhando no mundo recebem próximo da renda mínima de segurança. Tudo isso leva à seguinte questão: por que a pobreza é tão resiliente diante de uma riqueza sem precedentes?

A reestruturação das economias globais e nacionais nos moldes das políticas neoliberais (conforme descrito no Capítulo 3) é uma parte importante da resposta. Durante as últimas quatro décadas, a reestruturação neoliberal separou milhões de pessoas dos hemisférios ao sul do globo terrestre de seus meios de subsistência, ao mesmo tempo que cortou os mecanismos de proteção social com os quais tais famílias contavam.12 13

Despojados e abandonados pelo estado, tiveram poucos recursos para resistirem a uma integração em termos desiguais, e muitas vezes altamente coercitiva, numa economia monetária.
Em outras palavras, a necessidade intensificada de obter dinheiro para garantir a sobrevivência despeja milhões de pessoas no mercado de mão de obra, mas, por serem pobres, não possuem nenhum poder para moldarem as próprias condições de trabalho. Dessa forma, sujeitam-se às relações perigosas de trabalho, arriscadas, inseguras ou mal remuneradas, pois é a única maneira de atender as necessidades urgentes.

Incorporação adversa

Embora o entendimento predominante sobre a pobreza, dentro do pensamento econômico atual, é de que seja "residual" - conseqüência de exclusão da economia de mercado - a pesquisa mostra que se pode incluir alguém no mercado de trabalho e ainda sim, esse indivíduo continuar muito pobre.[14] Na verdade, para muitas pessoas, a inclusão piora suas condições, além de as colocar em risco.

Por exemplo, o mapeamento do trabalho forçado, feito por Nicola Phillips e Leonardo Sakamoto no setor de gado do Brasil, mostra que aqueles submetidos a esse tipo de atividade não são, necessariamente, os mais pobres. Para eles, algumas proteções sociais ainda existem. Em vez disso, os que incorrem mais em riscos estão ganhando um pouco acima do limite de renda para requererem proteção social e, portanto, são quase exclusivamente dependentes do rendimento do trabalho para sobreviverem.[15]

As pessoas flagradas nessa situação são normalmente chamadas de "trabalhadores pobres" e, como mencionado acima, seus números estão crescendo.

Phillips descreve situações como a que ela e Sakamoto observaram no Brasil como "incorporação adversa".[16] O ponto de vista central deste conceito é que quando as pessoas são obrigadas a empreender trabalho assalariado em termos ruins, isso pode contribuir para a pobreza e a vulnerabilidade, pois as impedem de acumularem riqueza ou alcançarem uma segurança econômica de longo prazo.

A dinâmica da incorporação adversa é circular, o que significa que, enquanto a pobreza vulnerabiliza as pessoas à exploração, essa exploração também reforça a incapacidade de escapar da pobreza.[17]

O uso de crianças para produzir roupas em ambientes baseados em casas, na Índia, demonstra como isso funciona. Uma pesquisa realizada por Phillips mostra que, em uma amostra de 201 famílias, quase 70% usaram crianças para cumprir ordens de trabalhos dos fabricantes de roupas e, na maior parte, as crianças receberam pouco ou nenhum dinheiro por tal atividade.[18]

Este sistema de produção terá efeitos imediatos e de longo prazo. Ao trabalhar nesses pedidos agora, as crianças provavelmente comerão amanhã. No entanto, a natureza auto-forçada de sua incorporação adversa, significa que trabalhar agora tornará menos provável que obtenham melhor trabalho no futuro.
Ao priorizar a sobrevivência a curto prazo sobre a segurança a longo prazo - quando fazer o contrário seria extremamente difícil, se não letal -, também renunciam à escolaridade ou a outras oportunidades que fortaleceriam seu poder de barganha no mercado de trabalho. Isso os impedem de "aprimorarem-se" para perspectivas de empregos mais qualificados, seguros e melhor remunerados, e só piora o atual estado de pobreza.[19, 20]

O caráter "multidimensional" da pobreza

A experiência da "pobreza" não pode, portanto, ser reduzida apenas à falta de dinheiro. A pobreza é "multidimensional", como a professora de economia Sabina Alkire deixou claro, o que significa que aqueles que estão na base da escala sócio-econômica são estatisticamente mais propensos a enfrentarem um conjunto de desvantagens que se reforçam mutuamente, numa combinação que perpetua tal estado de destituição.[21]

Incluem saúde precária, saneamento deficiente, insegurança alimentar ou falta de educação. Todas podendo interagir com a falta de dinheiro para aumentar a vulnerabilidade de um indivíduo ao trabalho forçado.

Para tomar apenas um exemplo quantitativo, um estudo multi-país da OIT que examina os antecedentes das vítimas formalmente identificadas do trabalho forçado, descobriu que aqueles que são originários de famílias com precariedade alimentar, ou casas que sofreram recentemente uma queda acentuada na receita, são muito mais propensos a terminar em situações de trabalho forçado do que outras.[22]
No Nepal, por exemplo, apenas 9% dos trabalhadores forçados identificados vieram de famílias com alimentação suficiente, em contraste, 56% vieram de famílias com insegurança alimentar.[23]

"Aqueles que estão na base da escala sócio-econômica são estatisticamente mais propensos a enfrentarem um conjunto de desvantagens que se reforçam mutuamente, que se combinam para perpetuar sua destituição."

A educação é outro bom exemplo do aspecto multidimensional da pobreza. As pessoas monetariamente pobres são mais propensas à uma educação ruim, porque são obrigadas a priorizar a sobrevivência a curto prazo, em detrimento de um longo treinamento formal. Os trabalhadores infantis que produziam roupas na Índia demonstraram isso na seção anterior. A falta de educação, por sua vez, reduz o poder de barganha no mercado de trabalho, tornando mais provável que os únicos serviços em oferta irão ocorrer com condições precárias.[24]

Os dados de uma série de estudos mostram agora uma forte correlação entre analfabetismo, ou baixos níveis de escolaridade, e a probabilidade de ser submetido ao trabalho forçado. No Brasil, por exemplo, quase 70% dos trabalhadores identificados pelo governo como "escravos" entre 2003 e 2009 eram analfabetos ou tinham no máximo quatro anos de escolaridade,[25] enquanto na Armênia, na Geórgia e na República da Moldávia, os trabalhadores forçados foram encontrados em agregados menos educados do que os "livremente empregados".[26]

A escravidão da dívida e os muitos rostos da pobreza

O papel da pobreza na criação de contingentes crescentes de pessoas vulneráveis ​​ao trabalho forçado, fica muito evidente no caso das dívidas. As dívidas, como qualquer um que já as contraiu sabe, podem ser um poderoso mecanismo punitivo.[27] Empréstimos ou adiantamentos - juntamente com outras medidas, como a retenção de salários - são frequentemente utilizados para controlar e coagir os trabalhadores. Nos países mais ricos, isso afeta os trabalhadores migrantes que contraem grandes empréstimos para financiarem suas viagens, e se encontram sem opção, a não ser trabalhar sob contratos altamente exploratórios para reembolsar as dívidas contraídas.[28, 29, 30, 31] Nos países mais pobres, a dívida captura e castiga os trabalhadores pobres que não têm acesso a crédito barato e, portanto, não podem absorver eventuais choques econômicos.

Relatórios da Verité sobre o setor açucareiro da Guatemala, a indústria do óleo de palma no Equador, e a produção de bens eletrônicos na Malásia fornecem mais evidências de como a interseção entre dívida, retenção de salários e práticas exploratórias de recrutamento aumentam a vulnerabilidade dos trabalhadores ao trabalho forçado.[32, 33, 34] Na Malásia, 28% dos 501 profissionais da área de eletrônicos estavam em situações de trabalho forçado, e mais de 80% relataram pagar taxas excessivas no processo de recrutamento. Na Guatemala, a Verité descobriu que a retenção de salários e refeições era uma prática punitiva comum, com o objetivo de assegurar que as quotas de produção fossem atendidas pelos trabalhadores agrícolas do setor açucareiro. Outra pesquisa encontrou práticas igualmente punitivas sendo usadas em outros lugares, como mostra o trabalho de Ben Richardson nos canaviais do Brasil,[35]e confirmou a importância da dívida para manter os trabalhadores sob controle.

Muitas pesquisas também foram feitas sobre a escravidão da dívida relacionada à área da saúde. Normalmente, as despesas com saúde são um grande fardo em países onde a cobertura dessa necessidade é pobre e / ou não é fornecida universalmente. Para piorar as coisas, nas áreas rurais onde o dinheiro é escasso, o crédito pode ser excepcionalmente caro. Essa combinação muitas vezes leva à escravidão da dívida, porque quando um membro da família precisa de uma atenção médica urgente, a única opção disponível é, geralmente, que outro membro da família tome um empréstimo contra a garantia de sua futura força de trabalho.[36, 37]

Em suma, a pobreza não é apenas falta de dinheiro. É uma teia de desvantagens correlacionadas e que se reforçam mutuamente, interagindo com as demandas da sociedade de mercado para moldar a vulnerabilidade das pessoas ao trabalho forçado. Entretanto, a história não pára por aí, posto que ainda temos que responder a questão de "por que algumas pessoas são mais propensas a estar em situações de pobreza do que outras." A identidade e a discriminação desempenham enormes papéis na determinação de quem aparece no topo, e é para isso que nos voltamos.


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