segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Doença cardíaca e Câncer - Assassinos cruéis revelam raízes em comum


Disseminando conhecimentos - Exercício de tradução

Recentemente, conheci um homem muito desafortunado. Um analista financeiro, na casa de seus 60 anos, que parecia respirar com dificuldade, e com o estranho hábito de arregalar os olhos e levantar as sobrancelhas cada vez que terminava uma frase.

"Eu tive dois cânceres potencialmente mortais", ele me disse. "Melanoma e câncer de pulmão. Eles tiraram o câncer de pulmão e o melanoma foi ressecado. "As sobrancelhas levantavam e caíam. "Mas não foram nenhum dos cânceres que quase me mataram", ele continuou, com o que me pareceu uma abordagem extraordinariamente otimista de sua história médica. "Foi um ataque cardíaco".

Meses antes, ele tivera um ataque agudo de dor no peito - uma sensação de rasgarem seu peito, que se alastrava para o braço esquerdo. Rapidamente foi levado ao hospital, onde os médicos descobriram um bloqueio quase completo em uma das principais artérias do coração. No momento em que os cardiologistas aliviaram o bloqueio, já havia uma fatia de tecido morto no órgão; e a função cardíaca normal jamais foi recuperada.

Se o caso desse homem tivesse sido apresentado uma década antes, eu teria pensado nele como vítima de duas doenças não relacionadas. Doenças cardíacas e câncer - Matador 1 e Matador 2 nos Estados Unidos - seres de universos paralelos na medicina. Doença coronariana, fomos ensinados como residentes médicos, era tipicamente causada pelo acúmulo de placas nas artérias, constituídas principalmente por depósitos de colesterol. Se a placa se rompe, surge um coágulo ao redor, precipitando um bloqueio agudo do fluxo sanguíneo - um "ataque cardíaco".

Os cardiologistas aprenderam que podiam prevenir o acúmulo de placas mudando a dieta , hábitos, ou usando drogas para reduzir o colesterol, como o Lipitor. Para além da prevenção, os médicos poderiam forçar a abertura do bloqueio arterial, ou injetar drogas que dissolvessem os coágulos. A imagem de velhos canos de chumbo entupidos e da solução  Roto-Rooter era difícil de encarar. A doença da artéria coronariana, ao que parece, tratava-se de um problema de encanamento, exigindo a caixa de ferramentas de um encanador (para ser justo, há um universo de biologia por trás do metabolismo do colesterol e sua ligação à doença cardíaca).

O câncer, ao contrário, era o problema para um exterminador - o dilema do veneno. Os agentes causadores de câncer desencadearam a proliferação celular anormal por genes mutantes, envolvidos na regulação do crescimento. Essas células cancerosas, ocupando tecidos e se espalhando, exigem um veneno celular - quimioterapia - que pouparia células normais e mataria as malignas.

Cardiologistas e oncologistas - encanadores e envenenadores - viviam em diferentes domínios médicos. Falavam línguas diferentes, assistiam à diferentes conferências, liam revistas especializadas exclusivas. Se os caminhos se cruzassem, considerava-se uma coincidência a inevitável convergência de duas doenças comuns e relacionadas à idade daquele corpo.

Eu era um residente médico em Boston, no início dos anos 2000, quando ouvi uma teoria que, com o tempo, forçaria esses mundos separados a colidirem. Dois cardiologistas, Peter Libby e Paul Ridker, estavam pensando na formação de placas de uma maneira diferente. Libby e Ridker reconheciam o papel do colesterol e dos lipídios. Mas tão importante quanto outra variável, raramente discutida: inflamação - a restauração e ativação de certas células imunes. Essas células imunes ativadas, infiltrando-se nos vasos sanguíneos no início da doença da coronária, permitiam que as placas crescessem e se rompessem. O colesterol "ruim" foi uma parte necessária da equação - estes depósitos lipídicos é que poderiam ativar as células imunes, propuseram - mas não foi suficiente.

Se a inflamação pode desencadear doença coronariana, poderia um ataque direto sobre ela - além de reduções nos níveis de colesterol - diminuir o risco de ataques cardíacos? Ao longo de uma década, Libby e Ridker encontraram-se focados em uma molécula envolvida em inflamação chamada interleucina-1 beta. Em meados dos anos 2000, eles ouviram falar de um novo fármaco - um inibidor de interleucina-1-beta - que foi usado para tratar doenças inflamatórias extremamente raras.  Em abril de 2011, a equipe de Ridker começou a incluir 10 mil pacientes que apresentavam sinais de inflamação, e estavam em risco muito alto de doença coronariana, em um estudo randomizado para determinar os efeitos do inibidor sobre doenças cardíacas e derrames.

Os resultados, publicados em agosto, são provocativos: apesar de nenhuma alteração nos níveis de colesterol, houve uma redução evidente nos ataques cardíacos, acidentes vasculares cerebrais e morte cardiovascular, particularmente em doses mais altas da droga. Mas o que chamou minha atenção foi uma análise aparentemente não relacionada, que levantava uma questão: a droga também poderia reduzir o risco de câncer?  Em um artigo publicado na The Lancet, Ridker e seus colegas descobriram que os pacientes tratados com drogas tinham uma queda em toda a mortalidade por câncer. Mais impressionante ainda foi uma diminuição significativa na incidência e nas mortes por câncer de pulmão.  Algum elemento na inflamação que impulsiona a formação de placas em doenças coronarianas, também é responsável pela progressão do câncer.

É um estudo que precisa de replicação cuidadosa; a análise foi projetada para sugerir uma hipótese, não para provar isso. Há perguntas sobre o preço da droga, os riscos de infecções, e alterações no sangue. Mas, se o benefício se sustentar em futuros ensaios, a inibição de interleucina-1-beta poderia, eventualmente, se classificar entre as mais eficazes estratégias de prevenção na história recente do câncer.

Inflamação no nexo entre câncer e doença cardíaca? Mas é claro, alguns de vocês devem estar pensando, com um aceno de cabeça exasperado. Você serviu-se de sua terceira porção de mirtilos; bebeu seu chá verde. Não era óbvio o tempo todo?

Não é tão simples. Uma avalanche de estudos indicou a inflamação como peça-chave em muitas doenças - mas há inconsistências.  Considere uma doença inflamatória como o lúpus: o risco da maioria dos cânceres (exceto alguns cânceres e linfomas relacionados com vírus) em pacientes com lúpus é apenas ligeiramente maior.  A artrite reumatoide aumenta o risco de linfomas, mas estranhamente reduz o risco de câncer de mama. A tuberculose, uma doença relacionada à inflamação, parece promover o risco de câncer de pulmão, mas em estudos com animais, o eczema, estranhamente, reduz o risco de câncer de pele.  Enquanto isso, uma indústria de medicamentos alternativos diariamente prega dietas "anti-inflamatórias" - mas qual delas reduz as inflamações, ou que tipos de inflamações são afetadas, são questões cujas respostas ainda estão distantes.

"Inflamação", em suma, é um conceito volátil - "um cesto com muitas palavras", como disse Padmanee Sharma, um imuno-oncologista no M.D. Anderson Cancer Center. Não há uma inflamação: o lúpus, a tuberculose e a gripe causam "inflamação", mas cada uma pode provocar respostas imunes diferentes ou sobrepostas. Perguntei a James Allison, que foi pioneiro na imunoterapia contra o câncer, para dissertar sobre "inflamação", e ele refletiu por um instante, considerando a definição.  "É uma resposta à lesão, mediada por células imunológicas. Mas há dezenas de tipos de células que se comunicam através de outras dezenas de sinais ".

Então, podemos imaginar uma inflamação como uma caixa de fusíveis em uma nova casa. Você está procurando o interruptor que liga a luz na sala de estar, ou que desliga o alarme (assim como estamos esperando encontrar o interruptor que desabilita o crescimento do câncer ou a formação da placa). Mas o circuito confunde você. Alguns botões estão marcados em carmesim: Não toque. Alguns não possuem etiquetas. Alguns sim, mas a escrita está em uma língua estrangeira.

"A inflamação, um termo do tipo guarda-chuva, agora está sendo dividida em muitas categorias diferentes", disse Sharma. É crônico ou agudo? Existe um tipo de inflamação "correta" que nos protege contra infecções e um tipo "errado" que precipita doenças? É imunidade "adaptativa" mediada - o tipo de imunidade que envolve células B e T que se adaptam às infecções? Ou a imunidade "inata", o mais antigo exército das respostas imunes, pré-programado para lutar contra certos patógenos?

Quando os médicos estudam ensaios como o de Ridker, geralmente fazem duas perguntas. A primeira pode ser vagamente descrita como: É boa ciência e boa medicina? O conceito proposto no estudo foi provado pelo julgamento? Se as conclusões fossem precisas, os efeitos adversos seriam aceitáveis?  Cardiologistas e oncologistas com os quais falei, concordaram com a precisão técnica do estudo. Um deles observou o modesto benefício para doenças cardíacas; Ridker e Libby reforçam que a droga é, pelo menos, tão eficaz quanto alguns medicamentos que reduzem o colesterol.

Mas há um segundo tipo de inquérito que é mais difícil de tratar, pois pertence a um reino quase estético. O estudo ilustra algo estranho e maravilhoso sobre a fisiologia humana? A análise até pode ser favorável, mas ainda não está completa.

O estudo liga cenários dispares da medicina através de um mecanismo patológico comum. É difícil saber se as doenças do homem que conheci foram devidas à inflamação, mas Ridker e Libby me forçaram a ver seu caso - e rever mais mil casos que eu tinha visto anteriormente, sob novas luzes clínicas. Nunca pensarei em pacientes com câncer e doenças das coronárias da mesma maneira.

Há, porém, um outro toque de admiração. Quais são as chances de uma molécula, posicionada em um canto da resposta imunológica, atuar como interruptor para duas doenças completamente diferentes?

Deve haver uma peculiaridade em nosso design, uma fenda quase visível na fisiologia que nos permita atingir a inflamação de uma maneira que não mate ou mutile, mas aja apenas assim, incapacitando duas doenças aterradoras.  É como se tivéssemos entrado no porão da nova casa, encontrássemos a caixa de fusíveis, aprendêssemos a ler a linguagem codificada dos rótulos e - na escuridão parcial - puxássemos apenas um interruptor. E, milagre dos milagres: no andar de cima, apenas as luzes da sala permanecem acessas.

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