segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

Noite cristalina


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Noite dos Cristais


Traduzido por Eduardo Rodrigues do original em:


"Judeu, um passo à frente para o fuzilamento!" Otto Sommer ordenou.
Na frente dele, um comerciante de meia-idade, descalço e trêmulo, vestido com um fino robe de algodão vermelho-sangue. Era quase meia-noite quando Sommer e seus cúmplices sádicos, três jovens agitados, com cerca de vinte anos, trajando camisas marrons invadiram o terceiro andar bem conservado em estilo art déco onde moravam Leo e Hannah Mayer. Com a trava de segurança levantada, Sommer apontou a pistola Luger 9 mm para a testa de Leo. Seria esta a sua segunda vítima naquela fria noite de novembro em Berlim?
No início daquela semana, Herschel Grynszpan, um belo judeu polonês de dezessete anos, vivendo ilegalmente em Paris, descobriu que a família na Alemanha havia sido destituída de suas propriedades e deportada para a Polônia. Aborrecido com a notícia, dirigiu-se à embaixada do Reich na rue de Lille 78, pediu para ver a secretária do embaixador. Grynszpan foi conduzido ao escritório de Ernst vom Rath. Corria o boato de que os dois se conheciam do bar Le Boeuf sur le Toit, bem popular entre os homossexuais de Paris.
Ao entrar no escritório de vom Rath, Herschel deixou escapar a raiva sobre a perseguição nazista aos judeus poloneses. Então, meteu a mão no bolso direito da capa de chuva e sacou o revólver de 6.35mm que comprara naquela manhã.
"Você não passa de um alemão imundo!" bradou.
Grynszpan disparou cinco tiros em rápida sucessão, mas apenas duas balas atingiram vom Rath; uma no ombro direito e outra no abdômen. O ferido foi levado às pressas para o Hospital Feminino de Alma, o mais próximo, e submetido a uma cirurgia salva-vidas. Os médicos conseguiram remover a bala alojada no estômago de vom Rath, porém, dois dias depois, ele não resistiu aos ferimentos. A notícia se espalhou por toda a Alemanha, juntamente com rumores de represálias aos judeus.
Agora, mais do que nunca, Hannah desejava ter seguido os passos de seu irmão mais novo, Albert. Ele se estabelecera como um talentoso arquiteto da Bauhaus em Tel Aviv. Albert tinha prometido ajudar a irmã e o cunhado a também se reinstalarem. Apesar das crescentes restrições impostas aos judeus, Leo não queria deixar a Alemanha. Ele ainda conseguia levar uma vida decente como comerciante têxtil, e não queria ter que lutar para reconstruir a vida, nem aprender uma nova língua. Leo estava convencido de que a onda de anti-semitismo dirigida pelos nazistas passaria, exatamente como muitas outras ao longo da história. O sionismo e o judaísmo não faziam parte de sua vida. A família Mayer não observava o Sabbath. Não se alimentavam à moda kosher. E no Natal até montavam uma pequena árvore e trocavam presentes. A rejeição de Leo à realidade que os cercavam assustara Hannah. Com o agravamento das condições, ela se tornava cada vez mais desiludida com aquele otimismo infantil.
Encarando a morte, Leo soltou a delicada mão suada da esposa e deu um passo à frente sobre o piso de madeira em vários tons de marrom escuro. Escondeu as mãos trêmulas nas costas. Quando parou, sentiu o cheiro de pólvora misturado com o desagradável bafo de cerveja vindo de Sommer.
"Eu, Capitão Leopold Mayer, sou um veterano de guerra condecorado."
Hannah ofegava horrorizada enquanto seu ritmo cardíaco acelerava. Um dos robustos militares apontou o bastão de madeira para a mulher.
"Seu marido está pedindo por isso!"
Leo acenou com a cabeça na direção da estante à sua esquerda. Ali estava uma foto, emoldurada em preto e branco, de si mesmo trajando o uniforme de infantaria de duas décadas atrás, em Berlim, prestes a embarcar em um trem que seguia para a frente ocidental, direto para o "inferno de Verdun". Ao lado, em uma caixa coberta de vidro, via-se a medalha de guerra da Cruz de Ferro do Império Alemão - Segunda Classe. Com o rosto drenado de todas as cores, Leo respirou fundo.
Eu testemunhei muito derramamento de sangue na França, vi o Spree ficar com as águas vermelhas por dias a fio. Enfrentei milhares de balas,  nenhuma delas carregava o meu nome. Você e sua turma de criminosos não me assustam. Vá...vá em frente e atire em mim!"
Leo acreditava que a prova oficial de sua corajosa contribuição à pátria alemã era a apólice de seguro que o protegeria e à esposa Hannah. Ninguém precisava saber que a medalha fora concedida à todos de sua unidade devido a coragem durante uma invasão noturna às trincheiras francesas, um ataque no qual ele mesmo se sujou. Nunca mencionara a ninguém em casa que havia se contorcido em posição fetal durante as explosões dos ataques da artilharia pesada francesa. As noites eram interrompidas pelas luzes intensamente claras de cada explosão. Era como se o dia já houvesse raiado. Soldados foram feitos em pedaços, corpos deixados para se decompor, sem cabeças ou membros; restos não identificáveis.
Sommer manteve seu objetivo por mais alguns segundos. Então, tirou o dedo indicador do gatilho e baixou o braço. Assim que Hannah sentiu-se alíviada, Sommer bateu no rosto de Leo com o cabo da Luger. O atingido caiu pesadamente no chão.
"Pare!" Hannah implorou.
"Cale a boca!"
A dor excruciante do osso fraturado na face direita tomou conta de Leo. Hannah estendeu as mãos e precisou da força dos dois braços para o levantar. Ele estava aturdido e sangrando do golpe profundo sob o olho direito.
Hanz, amarre as mãos dele e o leve para baixo. Deixe-o com os outros para que seja conduzido à estação ”, disse Sommer.
Leo foi arrastado para fora do apartamento; as mãos amarradas nas costas. A porta do vizinho estava entreaberta, pela brecha ele conseguiu ver Marie Fischer espiando o corredor. Hanz também vislumbrou-a  enquanto empurrava Leo para frente.
"Feche a porta e cuide da sua vida!" Hanz ordenou.
Marie obedeceu. Com Leo ausente, Sommer voltou sua atenção para Hannah.
"Você, fique comigo. Nós ainda não terminamos por aqui."
Ele relembrou aos companheiros sobre a tarefa à frente.
"Destruam tudo. Quebrem as janelas. Rasguem a arte degenerada dessas paredes. Tragam-me todas as joias. Temos mais visitas para fazer hoje à noite!"
Leo foi empurrado pela escada em espiral. Ao lado do apartamento do primeiro andar, tropeçou no corpo sem vida de Joseph Bamberger, um viúvo com quase setenta anos. Estava de bruços, morto por um único tiro na parte de trás da cabeça. Seus olhos escuros estavam bem abertos. A quipá de seda negra, reservada aos funerais, permaneceu agarrada em sua mão direita.
"Siga em frente se não quiser acabar como o seu vizinho!"
Hanz empurrou Leo no meio do último lance de escadas. O refém perdeu o equilíbrio na entrada principal e desabou na calçada. Voltou a ficar em pé e assim que se endireitou, o sofá de veludo azul de sua sala caiu logo à frente, espatifando-se em muitos pedaços. Após um suspiro de alívio, virou-se e olhou para cima. Apenas os dois apartamentos com ocupantes judeus estavam iluminados.
Leo se deu conta da fila de homens alquebrados, em pé, na calçada do outro lado da rua, nenhum deles aparentava ter idade avançada. Outro soldado ameaçava-os com a arma. Apesar de quase não interagir com a comunidade judaica, reconheceu alguns rostos. O mais novo na fila não passava dos dezoito anos. Ao longe, lá pelas bandas onde a sinagoga estava localizada, surgiu uma nuvem escura de fumaça.
"Felix, aqui está outro porco para a sua coleção!"
Hanz empurrou Leo para a rua. O homem recém aprisionado caiu na calçada cheia de vidro quebrado e sofreu cortes nas mãos e nos pés. Um dos homens na fila estendeu a mão e o ajudou a se levantar.
"Onde está a polícia?" Leo perguntou.
Shhh!!! sussurre, ou então esses bárbaros baterão em você até que morra”, disse o homem.
Esqueça a polícia. Eles não vão impedir essa brutalidade. Nem os bombeiros ”, disse outro homem na fila.
A polícia chegou só para observar se a revolta da multidão permanecia sob controle. Os bombeiros estavam a uma certa distância para garantir que as chamas não se estendessem além das propriedades judaicas. A destruição sistemática do apartamento da família Mayer continuou. Na frente dos homens detidos, mais peças de móveis desabavam na rua, assim como talheres, utensílios de cozinha, vasos, livros rasgados, peças de roupas e enxoval de cama. Pinturas emolduradas e fotografias da família foram arrancadas e jogadas fora. "Vingança por Paris!" foram os gritos insanos ouvidos repetidamente.
Lá no andar de cima, Sommer pressionava a Luger contra as costas de Hannah. Ele a obrigou a percorrer o corredor e a entrar no quarto principal decorado em preto e branco. Fechou a porta atrás de si e agarrou uma Hanna desprevenida.
"Tire essas roupas de dormir e abaixe a calcinha."
"Por favor, não... o que eu fiz para você?"
Sommer apontou a Luger para o peito dela. Hannah vacilou.
Faça o que eu digo.”
Ela se rendeu e revelou o corpo feminino de curvas notáveis e seios grandes. Pudicamente, a mulher cobriu as partes íntimas.
"Deite-se na cama!"
"Me deixe sair. Eu imploro!"
Shhh!
Sommer a empurrou para a cama de madeira. Ela caiu de costas no colchão macio.
"Abra as pernas..."
Hannah hesitou novamente. Sommer pressionou a Luger contra o joelho direito e, com a mão esquerda no joelho oposto, a fez se abrir. Totalmente exposta, Hannah nunca se sentira tão vulnerável. Até então, só Leo a tinha visto descoberta.
"Você ainda é uma mulher bonita."
Sommer virou-se e desligou a luz que pendia do teto. O quarto ficou escuro; Hannah não conseguiu ver mais nada.
"Não se preocupe, não vou tocar em você."
Em poucos segundos, a visão dela se adaptou à escuridão. A essa altura, Sommer estava de volta à sala de estar.
Ela é toda de vocês. Façam rodízio. Divirtam-se! Lembrem-se de não gozar dentro dela." Otto Sommer ordenou.
Hannah ouviu tudo, mas permaneceu paralisada. Concluiu que não havia razão para resistir. Mesmo o menor dentre os três poderia dominá-la. Hannah ficou em silêncio e perdeu o controle sobre seu corpo. Evitou contato visual com os agressores. Para seu desgosto, sentiu que estava molhada. Hannah não entendeu a proteção natural de seu corpo.
Ela queria infligir dor naqueles animais, enfiando as unhas pontiagudas bem fundo nas costas dos estupradores. Mas temia que eles a espancassem até a morte. Suou profusamente. O asqueroso mais pesado foi o último. Ele a virou para sodomizá-la. Hannah enterrou a cabeça no travesseiro de plumas macias e mordeu o mais forte que pôde. Acabou por desmaiar.
Na manhã seguinte, acordou congelando no frio da manhã ártica que se espalhara pelo apartamento. Obrigou-se a sair da cama. Hannah sentiu repugnância pelos restos pegajosos de sêmen ejaculado por todo o seu corpo. Evitou o grande espelho de parede emoldurado em ouro no quarto, o único vidro que parecia intocado no apartamento. Ficou horrorizada com a destruição. Manchas de sangue espalhadas pelo chão da sala seguiam em direção à entrada principal. O rádio fora esmagado, as lâmpadas quebradas, o chão estava cheio de cacos de vidro, fragmentos de móveis, utensílios quebrados e páginas de livros rasgados. As cortinas tinham sido esfarrapadas. Um forte cheiro de urina emanava dos tapetes. O premiado tabuleiro de xadrez feito à mão pelo pai de Léo, um carpinteiro amador, estava em pedaços depois de ter sido jogado contra a parede e, em seguida, pisoteado.
Hannah procurou refúgio no clássico banheiro de azulejos brancos. Por duas vezes certificou-se de que a porta estava trancada. Na banheira cheia de água morna, esfregou-se repetidamente, mas a sensação de imundície não a abandonava.
"Shonda, shonda, shonda!" ela repetia.
Com o pensamento fixo em se matar, Hannah perdeu o controle, lágrimas acumuladas e silenciosas explodiram e continuaram fluindo pelo que pareceu uma eternidade.
Perto dali, dois agentes à paisana da Gestapo traziam Leo da câmara subterrânea de tortura. Eles o empurraram para uma cela escura, abarrotada e sem janelas, fedida de suor e dejetos corporais; líquidos e sólidos. Leo desabou pesadamente sobre o chão gelado. Nenhum dos outros apáticos colegas de cela reagiu. O recém-chegado estava coberto de sangue e hematomas. Durante a noite, haviam-no açoitado com chicote de couro e espancado com cassetete de borracha. Ele implorou para que parassem. Seus gritos apenas encorajaram mais sadismo. Entre as surras, ele era jogado em um banho de água congelante. Algumas vezes, derramavam água em seu nariz. A tortura parou quando ele desmaiou, e uma nova vítima o substituiu.
Quando Leo não apareceu para trabalhar no final da tarde, seu amigo de longa data e parceiro de negócios, Dieter, fechou o escritório e saiu mais cedo do que o habitual para procurá-lo. O assunto do dia girava em torno dos ataques noturnos contra os judeus por toda a cidade. Dieter correu para o apartamento de Leo. Encontrou o lugar destrancado. A porta abriu emitindo um rangido. Seu coração batia forte enquanto ele, a passos lentos, adentrava a sala e se dava conta da destruição generalizada. Encontrou Hannah contorcida no quarto. Ela, em silêncio, limitou-se a cobrir o rosto com os braços. O visitante não tinha certeza se fora notado. Se aproximou, inclinou-se, mas não tocou nela.
Hannah, sou eu. Dieter."
Ela revelou o rosto; os olhos estavam vermelhos e inchados.
Deixe-me levá-la de volta para nossa casa. Ingrid cuidará de você. Ela vai te ouvir, se você quiser conversar. Vou continuar procurando por Leo."
Hannah se sentou e estendeu a mão para Dieter. Agarrou-lhe o sobretudo e soluçou no peito dele.
"Por favor, não me deixe."
"Não. Prometo que não."
Junto, embalaram alguns itens essenciais e, abandonaram a devastação.
Dieter e sua esposa Ingrid, uma enfermeira experiente, trataram Hannah como o fariam entre si. Nos dias que se seguiram, Hannah foi recuperando a força. Ela mal falava, não compartilhou nenhum detalhe do ataque, nem se aventurou do lado de fora. Hannah não perdia a esperança de que Leo voltaria. Dieter visitou hospitais e delegacias de polícia, mas não havia vestígios do amigo e parceiro. Então, um dia as notícias chegaram. A Gestapo transferira Leo para o campo de concentração de Sachsenhausen, ao norte de Berlim. Lá, ele sofreu mais intimidações, espancamentos e humilhações. Certa manhã, os guardas do acampamento chegaram e leram uma lista de nomes. Aqueles convocados eram veteranos de guerra, e estavam livres para partir. O nome de Leo estava na lista, porém, naquela manhã, ele jamais acordou. Para Hannah, não houve nenhum corpo a resgatar, nenhum funeral para organizar. Desolada, afundou na depressão, evitava espelhos, soluçava a maior parte do dia e da noite, recusava-se a tomar banho e, sem apetite, tornara-se perigosamente magra. A notícia de sua condição desesperada chegou a Albert em Tel Aviv.
Algumas semanas depois, Marie, ao sair do apartamento notou, do outro lado do corredor, uma jovem mãe e seu filho. A mulher estava destrancando a porta do apartamento restaurado da família Mayer. Ela usava um vestido simples, sem maquiagem e mantinha os longos cabelos loiros em um coque. O filho de dez anos estava trajado com o uniforme de inverno da Deutsche Jungvolk, exibindo uma única alça preta no ombro direito.
"Boa tarde? Sou Frau Fischer."
Boa tarde… me desculpe por não termos tido a chance de nos apresentar mais cedo. Acabamos de nos mudar. Eu sou Frau Charlotte Sommer. E esse é meu filho Klaus. Prazer em conhecê-la."
Ah… você tem um garoto bonito. Deve lhe trazer muita alegria."
"E ele nos deixa muito orgulhosos."
" Tenho certeza disso. Que tal o apartamento?"
"É perfeito. Justo o que precisávamos. Estou tão feliz por meu marido Otto ter encontrado esse lugar. Espero que em breve você o conheça."
Acredito que já o tenha conhecido quando ele veio ver o apartamento pela primeira vez. Um casal sem filhos morou aqui por muitos anos. O marido foi assassinado há algumas semanas. Muito trágico. A última vez que ouvi, a viúva deixou a Alemanha para começar uma nova vida na Palestina. 
Desejo-lhe um bom dia, Frau Fischer. Heil Hitler!"

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