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Noite dos Cristais
Traduzido por Eduardo Rodrigues do original em:
Na
frente dele, um comerciante de meia-idade, descalço e trêmulo,
vestido com um fino robe de algodão vermelho-sangue. Era quase
meia-noite quando Sommer e seus cúmplices sádicos, três jovens
agitados, com cerca de vinte anos, trajando camisas marrons invadiram
o terceiro andar bem conservado em estilo art déco onde moravam Leo
e Hannah Mayer. Com a trava de segurança levantada, Sommer apontou a
pistola Luger 9 mm para a testa de Leo. Seria esta a sua segunda
vítima naquela fria noite de novembro em Berlim?
No
início daquela semana, Herschel Grynszpan, um belo judeu polonês de
dezessete anos, vivendo ilegalmente em Paris, descobriu que a família
na Alemanha havia sido destituída de suas propriedades e deportada
para a Polônia. Aborrecido com a notícia, dirigiu-se à embaixada
do Reich na rue de Lille 78, pediu para ver a secretária do
embaixador. Grynszpan foi conduzido ao escritório de Ernst vom Rath.
Corria o boato de que os dois se conheciam do bar Le Boeuf sur le
Toit, bem popular entre os homossexuais de Paris.
Ao
entrar no escritório de vom Rath, Herschel deixou escapar a raiva
sobre a perseguição nazista aos judeus poloneses. Então, meteu a
mão no bolso direito da capa de chuva e sacou o revólver de 6.35mm
que comprara naquela manhã.
Grynszpan
disparou cinco tiros em rápida sucessão, mas apenas duas balas
atingiram vom Rath; uma no ombro direito e outra no abdômen. O
ferido foi levado às pressas para o Hospital Feminino de Alma, o
mais próximo, e submetido a uma cirurgia salva-vidas. Os médicos
conseguiram remover a bala alojada no estômago de vom Rath, porém,
dois dias depois, ele não resistiu aos ferimentos. A notícia se
espalhou por toda a Alemanha, juntamente com rumores de represálias
aos judeus.
Agora,
mais do que nunca, Hannah desejava ter seguido os passos de seu irmão
mais novo, Albert. Ele se estabelecera como um talentoso arquiteto da
Bauhaus em Tel Aviv. Albert tinha prometido ajudar a irmã e o cunhado a também se reinstalarem. Apesar das crescentes restrições
impostas aos judeus, Leo não queria deixar a Alemanha. Ele ainda
conseguia levar uma vida decente como comerciante têxtil, e não
queria ter que lutar para reconstruir a vida, nem aprender
uma nova língua. Leo estava convencido de que a onda de
anti-semitismo dirigida pelos nazistas passaria, exatamente como
muitas outras ao longo da história. O sionismo e o judaísmo não
faziam parte de sua vida. A família Mayer não observava o Sabbath.
Não se alimentavam à moda kosher. E no Natal até montavam uma
pequena árvore e trocavam presentes. A rejeição de Leo à
realidade que os cercavam assustara Hannah. Com o agravamento das
condições, ela se tornava cada vez mais desiludida com aquele otimismo
infantil.
Encarando
a morte, Leo soltou a delicada mão suada da esposa e deu um passo à
frente sobre o piso de madeira em vários tons de marrom escuro.
Escondeu as mãos trêmulas nas costas. Quando parou, sentiu o cheiro
de pólvora misturado com o desagradável bafo de cerveja vindo de
Sommer.
Hannah
ofegava horrorizada enquanto seu ritmo cardíaco acelerava. Um dos robustos militares apontou o bastão de madeira para a mulher.
Leo
acenou com a cabeça na direção da estante à sua esquerda. Ali
estava uma foto, emoldurada em preto e branco, de si mesmo trajando o
uniforme de infantaria de duas décadas atrás, em Berlim, prestes a
embarcar em um trem que seguia para a frente ocidental, direto para o
"inferno de Verdun". Ao lado, em uma caixa coberta de
vidro, via-se a medalha de guerra da Cruz de Ferro do Império Alemão
- Segunda Classe. Com o rosto drenado de todas as cores, Leo respirou
fundo.
“Eu
testemunhei muito derramamento de sangue na França, vi o Spree
ficar com as águas vermelhas por dias a fio. Enfrentei milhares de
balas, nenhuma delas carregava o meu nome. Você e sua turma de criminosos
não me assustam. Vá...vá em frente e atire em mim!"
Leo
acreditava que a prova oficial de sua corajosa contribuição à
pátria alemã era a apólice de seguro que o protegeria e à esposa
Hannah. Ninguém precisava saber que a medalha fora concedida à
todos de sua unidade devido a coragem durante uma invasão noturna às
trincheiras francesas, um ataque no qual ele mesmo se sujou. Nunca
mencionara a ninguém em casa que havia se contorcido em posição
fetal durante as explosões dos ataques da artilharia pesada
francesa. As noites eram interrompidas pelas luzes intensamente
claras de cada explosão. Era como se o dia já houvesse raiado.
Soldados foram feitos em pedaços, corpos deixados para se decompor, sem cabeças ou membros; restos não identificáveis.
Sommer
manteve seu objetivo por mais alguns segundos. Então, tirou o dedo
indicador do gatilho e baixou o braço. Assim que Hannah sentiu-se
alíviada, Sommer bateu no rosto de Leo com o cabo da Luger. O
atingido caiu pesadamente no chão.
A
dor excruciante do osso fraturado na face direita tomou conta de Leo.
Hannah estendeu as mãos e precisou da força dos dois braços para o
levantar. Ele estava aturdido e sangrando do golpe profundo sob o
olho direito.
“Hanz,
amarre as mãos dele e o leve para baixo. Deixe-o com os outros para
que seja conduzido à estação ”, disse Sommer.
Leo
foi arrastado para fora do apartamento; as mãos amarradas nas
costas. A porta do vizinho estava entreaberta, pela brecha ele
conseguiu ver Marie Fischer espiando o corredor. Hanz também
vislumbrou-a enquanto empurrava Leo para frente.
"Destruam
tudo. Quebrem as janelas. Rasguem a arte degenerada dessas paredes.
Tragam-me todas as joias. Temos mais visitas para fazer hoje à
noite!"
Leo
foi empurrado pela escada em espiral. Ao lado do apartamento do
primeiro andar, tropeçou no corpo sem vida de Joseph Bamberger,
um viúvo com quase setenta anos. Estava de bruços, morto por um
único tiro na parte de trás da cabeça. Seus olhos escuros estavam
bem abertos. A quipá de seda negra, reservada aos
funerais, permaneceu agarrada em sua mão direita.
Hanz
empurrou Leo no meio do último lance de escadas. O refém perdeu o
equilíbrio na entrada principal e desabou na calçada. Voltou a
ficar em pé e assim que se endireitou, o sofá de veludo azul de
sua sala caiu logo à frente, espatifando-se em muitos pedaços. Após
um suspiro de alívio, virou-se e olhou para cima. Apenas os dois
apartamentos com ocupantes judeus estavam iluminados.
Leo
se deu conta da fila de homens alquebrados, em pé, na calçada do
outro lado da rua, nenhum deles aparentava ter idade avançada. Outro
soldado ameaçava-os com a arma. Apesar de quase não interagir
com a comunidade judaica, reconheceu alguns rostos. O mais novo na
fila não passava dos dezoito anos. Ao longe, lá pelas bandas onde a
sinagoga estava localizada, surgiu uma nuvem escura de fumaça.
Hanz
empurrou Leo para a rua. O homem recém aprisionado caiu na calçada
cheia de vidro quebrado e sofreu cortes nas mãos e nos pés. Um dos
homens na fila estendeu a mão e o ajudou a se levantar.
“Esqueça
a polícia. Eles não vão impedir essa brutalidade. Nem os bombeiros
”, disse outro homem na fila.
A
polícia chegou só para observar se a revolta da multidão
permanecia sob controle. Os bombeiros estavam a uma certa distância
para garantir que as chamas não se estendessem além das
propriedades judaicas. A destruição sistemática do apartamento da
família Mayer continuou. Na frente dos homens detidos, mais peças
de móveis desabavam na rua, assim como talheres, utensílios de
cozinha, vasos, livros rasgados, peças de roupas e enxoval de cama.
Pinturas emolduradas e fotografias da família foram arrancadas e
jogadas fora. "Vingança por Paris!" foram os gritos
insanos ouvidos repetidamente.
Lá
no andar de cima, Sommer pressionava a Luger contra as costas de
Hannah. Ele a obrigou a percorrer o corredor e a entrar no quarto
principal decorado em preto e branco. Fechou a porta atrás de si e
agarrou uma Hanna desprevenida.
Ela
se rendeu e revelou o corpo feminino de curvas notáveis e seios
grandes. Pudicamente, a mulher cobriu as partes íntimas.
Hannah
hesitou novamente. Sommer pressionou a Luger contra o joelho direito
e, com a mão esquerda no joelho oposto, a fez se abrir. Totalmente
exposta, Hannah nunca se sentira tão vulnerável. Até então, só
Leo a tinha visto descoberta.
Sommer
virou-se e desligou a luz que pendia do teto. O quarto ficou escuro;
Hannah não conseguiu ver mais nada.
Em
poucos segundos, a visão dela se adaptou à escuridão. A essa
altura, Sommer estava de volta à sala de estar.
“Ela
é toda de vocês. Façam rodízio. Divirtam-se! Lembrem-se de não
gozar dentro dela." Otto Sommer ordenou.
Hannah
ouviu tudo, mas permaneceu paralisada. Concluiu que não havia razão
para resistir. Mesmo o menor dentre os três poderia dominá-la.
Hannah ficou em silêncio e perdeu o controle sobre seu corpo. Evitou contato visual com os agressores. Para seu desgosto, sentiu
que estava molhada. Hannah não entendeu a proteção natural de seu
corpo.
Ela
queria infligir dor naqueles animais, enfiando as unhas pontiagudas
bem fundo nas costas dos estupradores. Mas temia que eles a
espancassem até a morte. Suou profusamente. O asqueroso mais
pesado foi o último. Ele a virou para sodomizá-la. Hannah enterrou
a cabeça no travesseiro de plumas macias e mordeu o mais forte que
pôde. Acabou por desmaiar.
Na
manhã seguinte, acordou congelando no frio da manhã ártica
que se espalhara pelo apartamento. Obrigou-se a sair da cama. Hannah
sentiu repugnância pelos restos pegajosos de sêmen ejaculado por
todo o seu corpo. Evitou o grande espelho de parede emoldurado em
ouro no quarto, o único vidro que parecia intocado no apartamento.
Ficou horrorizada com a destruição. Manchas de sangue espalhadas
pelo chão da sala seguiam em direção à entrada principal. O rádio
fora esmagado, as lâmpadas quebradas, o chão estava cheio de cacos
de vidro, fragmentos de móveis, utensílios quebrados e páginas de
livros rasgados. As cortinas tinham sido esfarrapadas. Um forte
cheiro de urina emanava dos tapetes. O premiado tabuleiro de xadrez feito à mão pelo pai de Léo, um carpinteiro amador, estava em
pedaços depois de ter sido jogado contra a parede e, em seguida,
pisoteado.
Hannah
procurou refúgio no clássico banheiro de azulejos brancos. Por duas
vezes certificou-se de que a porta estava trancada. Na banheira cheia
de água morna, esfregou-se repetidamente, mas a sensação de
imundície não a abandonava.
Com
o pensamento fixo em se matar, Hannah perdeu o controle, lágrimas
acumuladas e silenciosas explodiram e continuaram fluindo pelo que
pareceu uma eternidade.
Perto
dali, dois agentes à paisana da Gestapo traziam Leo da câmara
subterrânea de tortura. Eles o empurraram para uma cela escura,
abarrotada e sem janelas, fedida de suor e dejetos corporais;
líquidos e sólidos. Leo desabou pesadamente sobre o chão gelado.
Nenhum dos outros apáticos colegas de cela reagiu. O recém-chegado
estava coberto de sangue e hematomas. Durante a noite, haviam-no
açoitado com chicote de couro e espancado com cassetete de borracha.
Ele implorou para que parassem. Seus gritos apenas encorajaram mais
sadismo. Entre as surras, ele era jogado em um banho de água
congelante. Algumas vezes, derramavam água em seu nariz. A tortura
parou quando ele desmaiou, e uma nova vítima o substituiu.
Quando
Leo não apareceu para trabalhar no final da tarde, seu amigo de
longa data e parceiro de negócios, Dieter, fechou o escritório e
saiu mais cedo do que o habitual para procurá-lo. O assunto do dia
girava em torno dos ataques noturnos contra os judeus por toda a
cidade. Dieter correu para o apartamento de Leo. Encontrou o
lugar destrancado. A porta abriu emitindo um rangido. Seu coração
batia forte enquanto ele, a passos lentos, adentrava a sala e se dava
conta da destruição generalizada. Encontrou Hannah contorcida no
quarto. Ela, em silêncio, limitou-se a cobrir o rosto com os braços.
O visitante não tinha certeza se fora notado. Se aproximou,
inclinou-se, mas não tocou nela.
“Deixe-me
levá-la de volta para nossa casa. Ingrid cuidará de você. Ela vai
te ouvir, se você quiser conversar. Vou continuar procurando por
Leo."
Dieter
e sua esposa Ingrid, uma enfermeira experiente, trataram Hannah como
o fariam entre si. Nos dias que se seguiram, Hannah foi recuperando a
força. Ela mal falava, não compartilhou nenhum detalhe do ataque,
nem se aventurou do lado de fora. Hannah não perdia a esperança de
que Leo voltaria. Dieter visitou hospitais e delegacias de polícia,
mas não havia vestígios do amigo e parceiro. Então, um dia as
notícias chegaram. A Gestapo transferira Leo para o campo de
concentração de Sachsenhausen, ao norte de Berlim. Lá, ele sofreu
mais intimidações, espancamentos e humilhações. Certa manhã, os
guardas do acampamento chegaram e leram uma lista de nomes. Aqueles
convocados eram veteranos de guerra, e estavam livres para partir. O
nome de Leo estava na lista, porém, naquela manhã, ele jamais
acordou. Para Hannah, não houve nenhum corpo a resgatar, nenhum
funeral para organizar. Desolada, afundou na depressão, evitava
espelhos, soluçava a maior parte do dia e da noite, recusava-se a
tomar banho e, sem apetite, tornara-se perigosamente magra. A notícia
de sua condição desesperada chegou a Albert em Tel Aviv.
Algumas
semanas depois, Marie, ao sair do apartamento notou, do outro lado do
corredor, uma jovem mãe e seu filho. A mulher estava destrancando a
porta do apartamento restaurado da família Mayer. Ela usava um
vestido simples, sem maquiagem e mantinha os longos cabelos loiros em
um coque. O filho de dez anos estava trajado com o uniforme de
inverno da Deutsche Jungvolk, exibindo uma única alça preta no
ombro direito.
“Boa
tarde… me desculpe por não termos tido a chance de nos apresentar
mais cedo. Acabamos de nos mudar. Eu sou Frau Charlotte Sommer. E
esse é meu filho Klaus. Prazer em conhecê-la."
"É
perfeito. Justo o que precisávamos. Estou tão feliz por meu marido
Otto ter encontrado esse lugar. Espero que em breve você o conheça."
“Acredito
que já o tenha conhecido quando ele veio ver o apartamento pela
primeira vez. Um casal sem filhos morou aqui por muitos anos. O
marido foi assassinado há algumas semanas. Muito trágico. A última
vez que ouvi, a viúva deixou a Alemanha para começar uma nova vida
na Palestina.
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