segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

Noite cristalina


fonte

Noite dos Cristais


Traduzido por Eduardo Rodrigues do original em:


"Judeu, um passo à frente para o fuzilamento!" Otto Sommer ordenou.
Na frente dele, um comerciante de meia-idade, descalço e trêmulo, vestido com um fino robe de algodão vermelho-sangue. Era quase meia-noite quando Sommer e seus cúmplices sádicos, três jovens agitados, com cerca de vinte anos, trajando camisas marrons invadiram o terceiro andar bem conservado em estilo art déco onde moravam Leo e Hannah Mayer. Com a trava de segurança levantada, Sommer apontou a pistola Luger 9 mm para a testa de Leo. Seria esta a sua segunda vítima naquela fria noite de novembro em Berlim?
No início daquela semana, Herschel Grynszpan, um belo judeu polonês de dezessete anos, vivendo ilegalmente em Paris, descobriu que a família na Alemanha havia sido destituída de suas propriedades e deportada para a Polônia. Aborrecido com a notícia, dirigiu-se à embaixada do Reich na rue de Lille 78, pediu para ver a secretária do embaixador. Grynszpan foi conduzido ao escritório de Ernst vom Rath. Corria o boato de que os dois se conheciam do bar Le Boeuf sur le Toit, bem popular entre os homossexuais de Paris.
Ao entrar no escritório de vom Rath, Herschel deixou escapar a raiva sobre a perseguição nazista aos judeus poloneses. Então, meteu a mão no bolso direito da capa de chuva e sacou o revólver de 6.35mm que comprara naquela manhã.
"Você não passa de um alemão imundo!" bradou.
Grynszpan disparou cinco tiros em rápida sucessão, mas apenas duas balas atingiram vom Rath; uma no ombro direito e outra no abdômen. O ferido foi levado às pressas para o Hospital Feminino de Alma, o mais próximo, e submetido a uma cirurgia salva-vidas. Os médicos conseguiram remover a bala alojada no estômago de vom Rath, porém, dois dias depois, ele não resistiu aos ferimentos. A notícia se espalhou por toda a Alemanha, juntamente com rumores de represálias aos judeus.
Agora, mais do que nunca, Hannah desejava ter seguido os passos de seu irmão mais novo, Albert. Ele se estabelecera como um talentoso arquiteto da Bauhaus em Tel Aviv. Albert tinha prometido ajudar a irmã e o cunhado a também se reinstalarem. Apesar das crescentes restrições impostas aos judeus, Leo não queria deixar a Alemanha. Ele ainda conseguia levar uma vida decente como comerciante têxtil, e não queria ter que lutar para reconstruir a vida, nem aprender uma nova língua. Leo estava convencido de que a onda de anti-semitismo dirigida pelos nazistas passaria, exatamente como muitas outras ao longo da história. O sionismo e o judaísmo não faziam parte de sua vida. A família Mayer não observava o Sabbath. Não se alimentavam à moda kosher. E no Natal até montavam uma pequena árvore e trocavam presentes. A rejeição de Leo à realidade que os cercavam assustara Hannah. Com o agravamento das condições, ela se tornava cada vez mais desiludida com aquele otimismo infantil.
Encarando a morte, Leo soltou a delicada mão suada da esposa e deu um passo à frente sobre o piso de madeira em vários tons de marrom escuro. Escondeu as mãos trêmulas nas costas. Quando parou, sentiu o cheiro de pólvora misturado com o desagradável bafo de cerveja vindo de Sommer.
"Eu, Capitão Leopold Mayer, sou um veterano de guerra condecorado."
Hannah ofegava horrorizada enquanto seu ritmo cardíaco acelerava. Um dos robustos militares apontou o bastão de madeira para a mulher.
"Seu marido está pedindo por isso!"
Leo acenou com a cabeça na direção da estante à sua esquerda. Ali estava uma foto, emoldurada em preto e branco, de si mesmo trajando o uniforme de infantaria de duas décadas atrás, em Berlim, prestes a embarcar em um trem que seguia para a frente ocidental, direto para o "inferno de Verdun". Ao lado, em uma caixa coberta de vidro, via-se a medalha de guerra da Cruz de Ferro do Império Alemão - Segunda Classe. Com o rosto drenado de todas as cores, Leo respirou fundo.
Eu testemunhei muito derramamento de sangue na França, vi o Spree ficar com as águas vermelhas por dias a fio. Enfrentei milhares de balas,  nenhuma delas carregava o meu nome. Você e sua turma de criminosos não me assustam. Vá...vá em frente e atire em mim!"
Leo acreditava que a prova oficial de sua corajosa contribuição à pátria alemã era a apólice de seguro que o protegeria e à esposa Hannah. Ninguém precisava saber que a medalha fora concedida à todos de sua unidade devido a coragem durante uma invasão noturna às trincheiras francesas, um ataque no qual ele mesmo se sujou. Nunca mencionara a ninguém em casa que havia se contorcido em posição fetal durante as explosões dos ataques da artilharia pesada francesa. As noites eram interrompidas pelas luzes intensamente claras de cada explosão. Era como se o dia já houvesse raiado. Soldados foram feitos em pedaços, corpos deixados para se decompor, sem cabeças ou membros; restos não identificáveis.
Sommer manteve seu objetivo por mais alguns segundos. Então, tirou o dedo indicador do gatilho e baixou o braço. Assim que Hannah sentiu-se alíviada, Sommer bateu no rosto de Leo com o cabo da Luger. O atingido caiu pesadamente no chão.
"Pare!" Hannah implorou.
"Cale a boca!"
A dor excruciante do osso fraturado na face direita tomou conta de Leo. Hannah estendeu as mãos e precisou da força dos dois braços para o levantar. Ele estava aturdido e sangrando do golpe profundo sob o olho direito.
Hanz, amarre as mãos dele e o leve para baixo. Deixe-o com os outros para que seja conduzido à estação ”, disse Sommer.
Leo foi arrastado para fora do apartamento; as mãos amarradas nas costas. A porta do vizinho estava entreaberta, pela brecha ele conseguiu ver Marie Fischer espiando o corredor. Hanz também vislumbrou-a  enquanto empurrava Leo para frente.
"Feche a porta e cuide da sua vida!" Hanz ordenou.
Marie obedeceu. Com Leo ausente, Sommer voltou sua atenção para Hannah.
"Você, fique comigo. Nós ainda não terminamos por aqui."
Ele relembrou aos companheiros sobre a tarefa à frente.
"Destruam tudo. Quebrem as janelas. Rasguem a arte degenerada dessas paredes. Tragam-me todas as joias. Temos mais visitas para fazer hoje à noite!"
Leo foi empurrado pela escada em espiral. Ao lado do apartamento do primeiro andar, tropeçou no corpo sem vida de Joseph Bamberger, um viúvo com quase setenta anos. Estava de bruços, morto por um único tiro na parte de trás da cabeça. Seus olhos escuros estavam bem abertos. A quipá de seda negra, reservada aos funerais, permaneceu agarrada em sua mão direita.
"Siga em frente se não quiser acabar como o seu vizinho!"
Hanz empurrou Leo no meio do último lance de escadas. O refém perdeu o equilíbrio na entrada principal e desabou na calçada. Voltou a ficar em pé e assim que se endireitou, o sofá de veludo azul de sua sala caiu logo à frente, espatifando-se em muitos pedaços. Após um suspiro de alívio, virou-se e olhou para cima. Apenas os dois apartamentos com ocupantes judeus estavam iluminados.
Leo se deu conta da fila de homens alquebrados, em pé, na calçada do outro lado da rua, nenhum deles aparentava ter idade avançada. Outro soldado ameaçava-os com a arma. Apesar de quase não interagir com a comunidade judaica, reconheceu alguns rostos. O mais novo na fila não passava dos dezoito anos. Ao longe, lá pelas bandas onde a sinagoga estava localizada, surgiu uma nuvem escura de fumaça.
"Felix, aqui está outro porco para a sua coleção!"
Hanz empurrou Leo para a rua. O homem recém aprisionado caiu na calçada cheia de vidro quebrado e sofreu cortes nas mãos e nos pés. Um dos homens na fila estendeu a mão e o ajudou a se levantar.
"Onde está a polícia?" Leo perguntou.
Shhh!!! sussurre, ou então esses bárbaros baterão em você até que morra”, disse o homem.
Esqueça a polícia. Eles não vão impedir essa brutalidade. Nem os bombeiros ”, disse outro homem na fila.
A polícia chegou só para observar se a revolta da multidão permanecia sob controle. Os bombeiros estavam a uma certa distância para garantir que as chamas não se estendessem além das propriedades judaicas. A destruição sistemática do apartamento da família Mayer continuou. Na frente dos homens detidos, mais peças de móveis desabavam na rua, assim como talheres, utensílios de cozinha, vasos, livros rasgados, peças de roupas e enxoval de cama. Pinturas emolduradas e fotografias da família foram arrancadas e jogadas fora. "Vingança por Paris!" foram os gritos insanos ouvidos repetidamente.
Lá no andar de cima, Sommer pressionava a Luger contra as costas de Hannah. Ele a obrigou a percorrer o corredor e a entrar no quarto principal decorado em preto e branco. Fechou a porta atrás de si e agarrou uma Hanna desprevenida.
"Tire essas roupas de dormir e abaixe a calcinha."
"Por favor, não... o que eu fiz para você?"
Sommer apontou a Luger para o peito dela. Hannah vacilou.
Faça o que eu digo.”
Ela se rendeu e revelou o corpo feminino de curvas notáveis e seios grandes. Pudicamente, a mulher cobriu as partes íntimas.
"Deite-se na cama!"
"Me deixe sair. Eu imploro!"
Shhh!
Sommer a empurrou para a cama de madeira. Ela caiu de costas no colchão macio.
"Abra as pernas..."
Hannah hesitou novamente. Sommer pressionou a Luger contra o joelho direito e, com a mão esquerda no joelho oposto, a fez se abrir. Totalmente exposta, Hannah nunca se sentira tão vulnerável. Até então, só Leo a tinha visto descoberta.
"Você ainda é uma mulher bonita."
Sommer virou-se e desligou a luz que pendia do teto. O quarto ficou escuro; Hannah não conseguiu ver mais nada.
"Não se preocupe, não vou tocar em você."
Em poucos segundos, a visão dela se adaptou à escuridão. A essa altura, Sommer estava de volta à sala de estar.
Ela é toda de vocês. Façam rodízio. Divirtam-se! Lembrem-se de não gozar dentro dela." Otto Sommer ordenou.
Hannah ouviu tudo, mas permaneceu paralisada. Concluiu que não havia razão para resistir. Mesmo o menor dentre os três poderia dominá-la. Hannah ficou em silêncio e perdeu o controle sobre seu corpo. Evitou contato visual com os agressores. Para seu desgosto, sentiu que estava molhada. Hannah não entendeu a proteção natural de seu corpo.
Ela queria infligir dor naqueles animais, enfiando as unhas pontiagudas bem fundo nas costas dos estupradores. Mas temia que eles a espancassem até a morte. Suou profusamente. O asqueroso mais pesado foi o último. Ele a virou para sodomizá-la. Hannah enterrou a cabeça no travesseiro de plumas macias e mordeu o mais forte que pôde. Acabou por desmaiar.
Na manhã seguinte, acordou congelando no frio da manhã ártica que se espalhara pelo apartamento. Obrigou-se a sair da cama. Hannah sentiu repugnância pelos restos pegajosos de sêmen ejaculado por todo o seu corpo. Evitou o grande espelho de parede emoldurado em ouro no quarto, o único vidro que parecia intocado no apartamento. Ficou horrorizada com a destruição. Manchas de sangue espalhadas pelo chão da sala seguiam em direção à entrada principal. O rádio fora esmagado, as lâmpadas quebradas, o chão estava cheio de cacos de vidro, fragmentos de móveis, utensílios quebrados e páginas de livros rasgados. As cortinas tinham sido esfarrapadas. Um forte cheiro de urina emanava dos tapetes. O premiado tabuleiro de xadrez feito à mão pelo pai de Léo, um carpinteiro amador, estava em pedaços depois de ter sido jogado contra a parede e, em seguida, pisoteado.
Hannah procurou refúgio no clássico banheiro de azulejos brancos. Por duas vezes certificou-se de que a porta estava trancada. Na banheira cheia de água morna, esfregou-se repetidamente, mas a sensação de imundície não a abandonava.
"Shonda, shonda, shonda!" ela repetia.
Com o pensamento fixo em se matar, Hannah perdeu o controle, lágrimas acumuladas e silenciosas explodiram e continuaram fluindo pelo que pareceu uma eternidade.
Perto dali, dois agentes à paisana da Gestapo traziam Leo da câmara subterrânea de tortura. Eles o empurraram para uma cela escura, abarrotada e sem janelas, fedida de suor e dejetos corporais; líquidos e sólidos. Leo desabou pesadamente sobre o chão gelado. Nenhum dos outros apáticos colegas de cela reagiu. O recém-chegado estava coberto de sangue e hematomas. Durante a noite, haviam-no açoitado com chicote de couro e espancado com cassetete de borracha. Ele implorou para que parassem. Seus gritos apenas encorajaram mais sadismo. Entre as surras, ele era jogado em um banho de água congelante. Algumas vezes, derramavam água em seu nariz. A tortura parou quando ele desmaiou, e uma nova vítima o substituiu.
Quando Leo não apareceu para trabalhar no final da tarde, seu amigo de longa data e parceiro de negócios, Dieter, fechou o escritório e saiu mais cedo do que o habitual para procurá-lo. O assunto do dia girava em torno dos ataques noturnos contra os judeus por toda a cidade. Dieter correu para o apartamento de Leo. Encontrou o lugar destrancado. A porta abriu emitindo um rangido. Seu coração batia forte enquanto ele, a passos lentos, adentrava a sala e se dava conta da destruição generalizada. Encontrou Hannah contorcida no quarto. Ela, em silêncio, limitou-se a cobrir o rosto com os braços. O visitante não tinha certeza se fora notado. Se aproximou, inclinou-se, mas não tocou nela.
Hannah, sou eu. Dieter."
Ela revelou o rosto; os olhos estavam vermelhos e inchados.
Deixe-me levá-la de volta para nossa casa. Ingrid cuidará de você. Ela vai te ouvir, se você quiser conversar. Vou continuar procurando por Leo."
Hannah se sentou e estendeu a mão para Dieter. Agarrou-lhe o sobretudo e soluçou no peito dele.
"Por favor, não me deixe."
"Não. Prometo que não."
Junto, embalaram alguns itens essenciais e, abandonaram a devastação.
Dieter e sua esposa Ingrid, uma enfermeira experiente, trataram Hannah como o fariam entre si. Nos dias que se seguiram, Hannah foi recuperando a força. Ela mal falava, não compartilhou nenhum detalhe do ataque, nem se aventurou do lado de fora. Hannah não perdia a esperança de que Leo voltaria. Dieter visitou hospitais e delegacias de polícia, mas não havia vestígios do amigo e parceiro. Então, um dia as notícias chegaram. A Gestapo transferira Leo para o campo de concentração de Sachsenhausen, ao norte de Berlim. Lá, ele sofreu mais intimidações, espancamentos e humilhações. Certa manhã, os guardas do acampamento chegaram e leram uma lista de nomes. Aqueles convocados eram veteranos de guerra, e estavam livres para partir. O nome de Leo estava na lista, porém, naquela manhã, ele jamais acordou. Para Hannah, não houve nenhum corpo a resgatar, nenhum funeral para organizar. Desolada, afundou na depressão, evitava espelhos, soluçava a maior parte do dia e da noite, recusava-se a tomar banho e, sem apetite, tornara-se perigosamente magra. A notícia de sua condição desesperada chegou a Albert em Tel Aviv.
Algumas semanas depois, Marie, ao sair do apartamento notou, do outro lado do corredor, uma jovem mãe e seu filho. A mulher estava destrancando a porta do apartamento restaurado da família Mayer. Ela usava um vestido simples, sem maquiagem e mantinha os longos cabelos loiros em um coque. O filho de dez anos estava trajado com o uniforme de inverno da Deutsche Jungvolk, exibindo uma única alça preta no ombro direito.
"Boa tarde? Sou Frau Fischer."
Boa tarde… me desculpe por não termos tido a chance de nos apresentar mais cedo. Acabamos de nos mudar. Eu sou Frau Charlotte Sommer. E esse é meu filho Klaus. Prazer em conhecê-la."
Ah… você tem um garoto bonito. Deve lhe trazer muita alegria."
"E ele nos deixa muito orgulhosos."
" Tenho certeza disso. Que tal o apartamento?"
"É perfeito. Justo o que precisávamos. Estou tão feliz por meu marido Otto ter encontrado esse lugar. Espero que em breve você o conheça."
Acredito que já o tenha conhecido quando ele veio ver o apartamento pela primeira vez. Um casal sem filhos morou aqui por muitos anos. O marido foi assassinado há algumas semanas. Muito trágico. A última vez que ouvi, a viúva deixou a Alemanha para começar uma nova vida na Palestina. 
Desejo-lhe um bom dia, Frau Fischer. Heil Hitler!"

Gostou? Acha que poderia ser útil para mais alguém? Enriqueça suas redes sociais compartilhando num dos ícones abaixo (facebook, google +, twitter).



segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

Como os livros podem competir com as poderosas distrações digitais?




Continuação da postagem de 17.12.2018 - O poderoso bombardeio digital que interfere em nossas atividades diárias.

Como os livros podem competir?

Agradando-nos à morte

Há um famoso estudo com ratos cujos cérebros foram ligados a eletrodos. Quando os ratos pressionavam uma alavanca, uma pequena carga era liberada em parte do cérebro, estimulando a liberação de dopamina. Uma alavanca de prazer .
Podendo escolher entre alimentos e dopamina, eles optaram pela dopamina, muitas vezes até o ponto de exaustão e fome. Preferiam a dopamina ao sexo. Alguns estudos registraram ratos pressionando a alavanca de dopamina 700 vezes em uma hora.
Nós fazemos a mesma coisa com o nosso e-mail. Atualizar. Atualizar.

Não há nenhum universo lindo do outro lado do botão de atualização de e-mail e, ainda assim, é a atração por esse botão que continua me afastando do trabalho que estou fazendo, de ler livros que quero ler.

Por que os livros são importantes?

Quando reflito sobre a minha vida, posso definir um conjunto de livros que me moldaram - intelectualmente, emocionalmente e espiritualmente. Os livros sempre foram uma fuga, uma experiência de aprendizado, um salvador, mas além disso, mais do que isso, certos livros se tornaram, ao longo do tempo, uma espécie de cola que une minha compreensão do mundo. Penso neles como nós de conhecimento e emoção, nós que unem o tecido do qual sou feito. Livros, pelo menos para mim, conseguem a proeza de me manter coeso.
Os livros, diferente da arte visual, da música, do rádio, e até do amor, nos forçam a caminhar através dos pensamentos de terceiros, uma palavra por vez, ao longo de horas, por dias. Durante essa travessia compartilhamos nossas mentes com a do escritor. Há uma lentidão, uma reflexão forçada exigida por esse meio que é único. Os livros recriam os pensamentos de outras pessoas dentro de nossas próprias mentes, e talvez seja esse mapeamento tão íntimo das palavras de outro alguém, que por conta própria, sem estímulos externos, dão poder aos livros. Os livros nos forçam a deixar que os pensamentos de outros habitem em nossas mentes, completamente.
Não são apenas transferidores de conhecimento e emoção, mas um tipo especial de instrumento com o poder de transformar o eu atual em outro eu, que permite a experimentação de ideias e emoções estrangeiras.
Essa supressão do eu também é uma espécie de meditação - e, embora os livros sempre tenham sido importantes para mim por si mesmos (pré-digitais), começou a me ocorrer que “aprender de novo a ler livros” pode ser uma maneira de começar a livrar minha mente desses detritos digitais encharcados de dopamina, essa lavagem sem sentido da informação digital, e teria um duplo benefício: eu estaria lendo livros de novo, e voltaria a recuperar a minha mente.
E existem, geralmente, belos universos a serem encontrados do outro lado da capa de um livro.

Os problemas com as coisas digitais

A neurociência moderna confirma muitas das coisas que nós, sofredores da sobrecarga digital, conhecemos na prática, e muito. Essa multitarefa de sucesso é um mito. A tal da "Multitarefa" nos torna mais estúpidos. Segundo o psicólogo Glenn Wilson, as perdas cognitivas por causa da multitarefa são equivalentes ao hábito de fumar maconha. (ATUALIZAÇÃO: agradeço à Liza Daly por apontar que Glenn Wilson declarou publicamente que o estudo era parte de um programa pago de relações públicas, e foi deturpado na mídia. Veja: http://www.drglennwilson.com/Infomania_experiment_for_HP.doc)
Isso é ruim por muitas razões: nos torna menos eficientes no trabalho, o que significa que temos menos a fazer, ou temos menos tempo para gastar fazendo outras coisas, ou ambos.
Estar em uma situação na qual você tem que se concentrar em uma tarefa, e um e-mail não está lido na sua caixa de entrada, pode reduzir seu QI efetivo em 10 pontos. (A mente organizada, por Daniel J Levitin)
É pior do que isso, porque o constante saltar de uma coisa para outra também é desgastante.
Meus dias menos produtivos, os dias que passo a maior parte do tempo pulando entre projetos, e-mails, o Twitter e qualquer outra coisa, também são os dias mais exaustivos. Eu costumava pensar que minha exaustão foi a causa dessa falta de foco, mas o oposto pode ser verdade.
Gasta-se mais energia ao desviar sua atenção de tarefa para tarefa. Demanda menos energia se concentrar. Isso significa que as pessoas que organizam seu tempo de uma maneira que lhes permita se concentrar, não apenas farão mais, mas estarão menos cansadas e menos neuro-quimicamente esgotadas depois de fazê-lo. (A mente organizada, por Daniel J Levitin)

O problema definido

E assim, o problema é, mais ou menos, identificado:
  1. Eu não posso ler livros, pois o meu cérebro foi treinado para querer constantemente doses de dopamina que, por sua vez, são fornecida pelas interrupções digitais.
  2. Este vício de dopamina digital significa que tenho dificuldade em me concentrar: em livros, trabalho, família e amigos
Problema identificado, ou a maior parte dele. Existe mais.

Ah, e não se esqueça da televisão

Vivemos em uma idade de ouro da televisão, não há dúvida. As coisas que estão sendo produzidas nos dias de hoje são muito boas. E há muito disso.
Nos últimos dois anos, minha rotina noturna tem sido uma variação de: chegar em casa, vindo do trabalho, exausto. Certificar-me de que as garotas comeram. Certificar-me de que eu mesmo coma. Levar as meninas para a cama. Sentir a exaustão. Ligar o computador para assistir alguma coisa da nova era dourada da televisão. Mexer com e-mails de trabalho e, em geral, me distrair enquanto a TV da era dourada consome 57% da minha atenção. Ser ruim em assistir TV e ruim em lidar com e-mails. Ir para a cama. Tentar ler. Verificar e-mail. Tentar ler novamente. Adormecer.
Aqueles que leem são donos do mundo, e aqueles que assistem à televisão perdem-no. (Werner Herzog)
Não sei se Werner Herzog está certo, mas sei que nunca diria sobre a televisão - mesmo com as inúmeras grandes produções - o que digo sobre os livros. Não existem programas de televisão que, ao contrário dos nós, consolidem minha compreensão do mundo. Meu relacionamento com a televisão não é o mesmo que tenho com os livros.

E assim, uma mudança

E assim, a partir de janeiro, comecei a fazer algumas mudanças. As principais são:
  1. Não há mais Twitter, Facebook ou leitura de artigos durante o dia de trabalho (difícil)
  2. Nenhuma leitura de artigos aleatórios de notícias (difícil)
  3. Não há smartphones ou computadores no quarto (fácil)
  4. Nenhuma TV depois do jantar (desligadas, fácil)
  5. Em vez disso, vá direto para a cama e comece a ler um livro - geralmente em um e-reader (é fácil)
O mais chocante foi a rapidez com que minha mente se adaptou a leitura dos livros novamente. Eu esperava ter que lutar por essa concentração - mas não foi preciso fazer força. Com menos entradas digitais (sem TV pré-leito, especialmente), tempo extra (sem TV, novamente), e sem um dispositivo digital tentador à mão ... havia tempo e espaço para a minha mente se acomodar em um livro.
Que sentimento maravilhoso foi esse.
Estou lendo mais livros agora do que o fizera em anos. Tenho mais energia e foco do que tive há séculos. Ainda não dominei totalmente o meu vício em dopamina digital, mas estou chegando lá. Acho que ler livros está me ajudando a concentrar minha mente, a ter foco.
E os livros, na verdade, ainda são as mesmas coisas maravilhosas que costumavam ser. Eu posso lê-los novamente.
Os e-mails diários, no entanto, continuam sendo um problema. Se você tiver sugestões para isso, por favor me avise.
Hugh McGuire



Gostou? Acha que poderia ser útil para mais alguém? Enriqueça suas redes sociais compartilhando num dos ícones abaixo (facebook, google +, twitter).


quarta-feira, 2 de janeiro de 2019

O poderoso bombardeio digital que interfere em nossas atividades diárias


Escolhas: Parte 1 (xkcd)

Por que não conseguimos ler mais?

Ou, os livros podem nos salvar do que o meio digital faz com nosso cérebro?


Traduzido por Eduardo Rodrigues do original em: https://medium.com/@hughmcguire/why-can-t-we-read-anymore-503c38c131fe

No ano passado, li quatro livros.
As razões para esse baixo número são, acho eu, as mesmas razões que você teve para ler menos livros do que acha que deveria ter lido no ano anterior: Tem sido cada vez mais difícil me concentrar em palavras, frases, parágrafos. Muito menos em capítulos. Os capítulos costumam ter página após página "cheinhas" de parágrafos. É como se um espantoso número de palavras concentrassem-se em si mesmas, sem que algo mais aconteça. E uma vez terminado um capítulo, você tem que passar para outro. E, geralmente, por mais um monte deles, antes que se possa dizer terminado, e chegar ao próximo. O próximo livro. A próxima coisa. A próxima possibilidade. Próximo, próximo, próximo.

Eu sou um otimista

Ainda, sou um otimista. Na maioria das noites do ano passado fui para a cama com um livro - papel ou eletrônico - e comecei. Leitura. Leia. Lendo. Uma palavra depois da próxima. Uma frase. Duas frases.
Talvez três.
E então ... Eu precisava de "alguma coisinha" a mais. Algo para me ajudar a continuar. Algo para aliviar aquela pequena coceira no fundo da minha mente - apenas uma rápida olhada no e-mail do meu iPhone; escrever e apagar uma resposta a um tweet engraçado de William Gibson; encontrar, e seguir um link para um artigo bom, realmente bom, no New Yorker, ou melhor, a New York Review of Books (que eu poderia até ler a maior parte, se é tão bom assim). E-mail novamente, só para ter certeza.
Eu li mais outra frase. Já foram quatro frases.
Os fumantes mais otimistas sobre sua capacidade de resistir à tentação são os mais propensos a recair quatro meses depois, e os dietistas super otimistas são os menos propensos a perderem peso. (Kelly McGonigal: O instinto da força de vontade)
Lendo quatro frases por dia demora muito tempo para terminar um livro.
E é cansativo. Eu costumava dormir no meio da sentença número cinco.
Tenho notado esse padrão de comportamento há algum tempo, mas acho que a contagem de livros completos do ano passado nunca foi tão baixa antes. Desanimador, profundamente desanimador, pois minha vida profissional gira em torno de livros:comecei no LibriVox (audiobooks de domínio público gratuito) e Pressbooks (uma plataforma on-line para fazer impressão e e-books), co-editei uma obra sobre o futuro dos livros.
Eu dediquei minha vida, de um jeito ou de outro, aos livros, acredito neles, mas não consigo lê-los.
E não estou sozinho.

Quando o pessoal da New Yorker não consegue se concentrar o suficiente para ouvir uma música inteira, como os livros sobreviveriam?

Recentemente, ouvi uma entrevista no podcast da New Yorker, o apresentador estava entrevistando o escritor e fotógrafo Teju Cole.
Entrevistador:
Um dos desafios da cultura agora é, digamos, ouvir uma música inteira, estamos todos muito distraídos. Você ainda é capaz de dar uma profunda atenção às coisas, é capaz de se envolver em cultura dessa maneira?
Teju Cole:
Sim, com certeza.
Quando ouvi isso, senti vontade de abraçar o entrevistador. Ele nem conseguia escutar uma música completa antes de se distrair. Imagine como deveria estar a sua pilha de livros de cabeceira.
Também senti vontade de abraçar Teju Cole. São pessoas como o Sr. Cole que nos dão esperança de que alguém permaneça capaz de ensinar aos nossos filhos lerem livros.

Dançando para a distração

O que era verdade com meus problemas em ler livros - o inevitável canto da sereia da mega bomba digital de novas informações - também valia para o resto da minha vida.
Minha filha de dois anos dança em recitais. Tutu rosa. Orelhas de gato presas na cabecinha dela. Juntamente com outras crianças de dois anos de idade, diante de uma multidão de 75 pais e avós, essas criancinhas fizeram um show. Já pode imaginar o resto. Você tem visto esses vídeos no Youtube, talvez até eu tenha mostrado os meus. O nível de fofura era extremo, um momento que define um determinado tipo de orgulho paterno. Minha filha nem ao menos dançou, ela apenas vagou pelo palco, olhando para a plateia com os olhos tão arregalados quanto os olhos de uma criança de dois anos interagindo com um bando de estranhos. Não importava que ela dançasse ou não, eu estava tão orgulhoso. Tirei fotos, filmei usando o meu celular.
E, em todo o caso, verifiquei meu correio eletrônico. Twitter. Nunca se sabe.
Frequentemente me vejo nesse tipo de situação - checando e-mails, Twitter ou Facebook - sem nada a ganhar, a não ser o estresse de uma mensagem relacionada ao trabalho que, de qualquer maneira, não poderia mesmo responder naquele momento.
Isso me faz sentir vagamente indigno, consultando meu celular com minha filha fazendo algo maravilhoso ao meu lado, como se eu estivesse furtando sorrateiramente um cigarro.
Ou um cachimbo de crack.
Uma vez eu estava lendo no celular enquanto minha filha mais velha, a de quatro anos, tentava falar comigo. Não ouvi muito bem o que ela havia dito, mas era um artigo sobre a Coréia do Norte. Ela agarrou meu rosto com as duas mãos, puxou-me para ela. "Olhe para mim" - ela disse - "quando estou falando com você."
E estava coberta de razão. Eu deveria sempre olhar.

Socializando com amigos ou familiares, muitas vezes sinto a vibração urgente vinda daquela barra de aço inoxidável, vidro e metais raros no meu bolso. Toque em mim. Olha para mim. Você pode encontrar algo maravilhoso.
Essa doença não se limita a quando estou tentando ler, ou durante os eventos inesquecíveis com minha filha.
No trabalho, minha concentração é constantemente quebrada: terminando de escrever um artigo (este, na verdade), respondendo à solicitação do cliente, revisando e comentando os novos designs, aprimorando a cópia no Sobre a página. Estabelecendo contatos com isso e aquilo. Impostos.
Todas essas tarefas críticas para a minha subsistência são sobrepostas, com mais frequência do que eu deveria admitir, por uma rápida olhada no Twitter (para o trabalho), ou no Facebook (também para o trabalho), ou um artigo sobre os Conjuntos de Mandelbrot (que, neste minuto, eu li).
E-mail, claro, é o pior, porque e-mail é onde o trabalho acontece, e mesmo que não seja o trabalho que você deveria fazer agora , pode ser uma tarefa mais fácil do que a atual, e isso significa que você pode acabar trocando de atividade em vez de continuar se concentrando no que estava fazendo até então. E só então voltar ao que deveria ocupar a sua atenção integral.
Dopamina e meio digital
Acontece que os dispositivos digitais e os softwares são afinados para fazer com que prestemos atenção neles, não importando o que mais devêssemos estar fazendo. O mecanismo, corroborado por recentes estudos neurocientíficos, é algo assim:
  • Novas informações criam uma onda de dopamina no cérebro, um neurotransmissor que faz você se sentir bem.
  • A promessa de novas informações compele o seu cérebro a procurar essa onda de dopamina.
Nas imagens por ressonância magnética é possível ver que os centros de prazer do cérebro se iluminam (com atividade) quando novos e-mails chegam.
Então, cada novo e-mail recebido lhe proporciona uma pequena inundação de dopamina. Cada pequena descarga da substância reforça na memória que checar o e-mail gera uma nova enxurrada. E nossos cérebros ficam programados para procurar coisas que nos darão pequenas doses dessa dopamina. Além disso, esses padrões de comportamento começam a criar caminhos neurais, para que se tornem hábitos inconscientes: trabalhe em algo importante, coceira cerebral, checar e-mail, dopamina, atualização, dopamina, checar o Twitter, dopamina, voltar ao trabalho. Mais e mais, e a cada vez o hábito se torna mais arraigado nas estruturas de nossos cérebros.
Como os livros podem competir?  (CONTINUA)


Gostou? Acha que poderia ser útil para mais alguém? Enriqueça suas redes sociais compartilhando num dos ícones abaixo (facebook, google +, twitter).