segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

A Sopa de cérebro da brilhante neurocientista BRASILEIRA Suzana Herculano-Houzel


Para Desbloquear os Mistérios do Cérebro, Esmague-o

Uma neurocientista da Vanderbilt descobriu uma maneira incomum, mas chocantemente eficaz, de estudar o nosso órgão mais enigmático.


Por Ferris JabrUm


Junho de 2012, no aeroporto internacional de São Paulo, Suzana Herculano-Houzel carregou duas pesadas malas para uma esteira de raios-X. À medida que a bagagem passava pelo scanner, os olhos do agente aduaneiro se arregalaram. As malas não continham roupas, artigos de higiene pessoal ou qualquer dos acessórios habituais de viagem. Em vez disso, elas estavam recheadas com mais de duas dúzias de pacotes curiosamente embrulhados, cada um contendo uma bolha amorfa suspensa em líquido. O agente pediu que Herculano-Houzel abrisse as malas, suspeitando que ela estivesse tentando contrabandear queijo fresco para o país; momentos antes duas pessoas haviam sido flagradas fazendo exatamente isso.
"Não é queijo," - declarou a suspeita - "são apenas cérebros."
Ela, uma neurocientista, explicou que acabara de voltar de uma expedição de pesquisa incomum, mas completamente legal, na África do Sul, onde coletou cérebros de diversas espécies: girafas, leões, antílopes, mangustos, hienas, gnus e ratos do deserto. E estava trazendo os órgãos, selados em recipientes com anticongelante, de volta ao seu laboratório no Rio de Janeiro. Os agentes alfandegários analisaram sua extensa coleção de licenças e documentação, e finalmente a deixaram passar com as malas no carrinho.
O cérebro é algo precioso, e contém grande parte dos mistérios não solucionados da ciência. O que não sabemos sobre o cérebro ainda esconde muito do que fazemos. Não sabemos como o cérebro gera consciência. Não temos certeza sobre por que dormimos e sonhamos. As causas precisas de muitas doenças mentais e distúrbios neurológicos nos escapam. Qual é a forma física de uma memória? Temos apenas suspeitas. Ainda não quebramos o código neural: ou seja, como as redes de neurônios usam sinais elétricos e químicos para armazenar e transmitir informações. Até muito recentemente - até Herculano-Houzel publicar uma importante descoberta em 2009 - nem sequer sabíamos quantas células o cérebro humano continha. Pensávamos que sabíamos.
Antes do avanço de Herculano-Houzel, havia uma teoria dominante sobre o cérebro humano, repetida por cientistas, livros didáticos e jornalistas. Era a seguinte: grandes cérebros são melhores do que cérebros pequenos, porque contêm mais neurônios, e,  ainda mais importante; a relação entre o tamanho do cérebro e do corpo. Os animais mais inteligentes possuem cérebros excepcionalmente grandes para o seu tamanho corporal. Os seres humanos têm um cérebro sete vezes maior do que o esperado dado o nosso tamanho total - uma proporção sem rivais. Então, dizia a teoria, algo deve ter acontecido no decurso da evolução da espécie para privilegiar o cérebro humano, inchar suas proporções muito além do que é típico em outros animais, mesmo os nossos espertos primos macacos e primatas. Como resultado, nos tornamos os cabeções do reino animal, com crânios espaçosos o suficiente para acomodar trilhões de células cerebrais: 100 bilhões de neurônios eletricamente ativos e 10 a 50 vezes mais células de suporte, conhecidas como glia.
Ao comparar a anatomia do cérebro em um grande número de espécies, Herculano-Houzel revelou que esta teoria está seriamente equivocada. Além de derrubar inúmeros pressupostos e mitos sobre o cérebro, e reescrever algumas das regras fundamentais sobre como esse órgão é constituído - ela também propôs uma das hipóteses mais coesa e baseada em evidências para a evolução do cérebro humano até o presente.
Mas seus métodos primários são bastante diferentes dos demais em seu campo. Ela não submete cérebros vivos a eletrodos e scanners. Também não divide os cérebros em fatias finas, tipo presunto, cuidadosamente "sanduichadas" entre lâminas de vidro. Nem conserva o material em frascos de formaldeído para armazenamento de longo prazo. Em vez disso, prefere desmantelá-los. Cada órgão, cuidadosamente protegido em sua jornada transatlântica, foi destinado a ser liquefeito em uma mistura turva que ela chama carinhosamente de "sopa de cérebro" - a chave de sua técnica inovadora para entender o que é, indiscutivelmente, o mais complexo aglomerado de matéria do universo. Desmantelar o cérebro, permite que ela o reconstrua.
Durante décadas, o método padrão para contar células cerebrais foi a estereologia: cortar o cérebro, calcular células em folhas finas de tecido espalhadas em lâminas de microscópio, e multiplicar esses números pelo volume da região relevante para obter uma estimativa. A estereologia é uma técnica trabalhosa que funciona bem para áreas pequenas e relativamente uniformes do cérebro. Mas muitas espécies têm cérebros que são simplesmente muito grandes, e complexamente retorcidos para serem submetidos à estereologia. O uso de estereologia para fazer um mapa do cérebro humano exigiria uma quantidade assustadora de tempo, recursos e precisão infalível.
"Percebi que não conhecíamos o básico sobre o que constitui o cérebro humano, muito menos do que outros cérebros eram feitos, e como poderíamos compará-los"
Em um estudo da década de 1970, Herculano-Houzel descobriu uma curiosa proposta alternativa à estereologia: por que não medir a quantidade total de DNA em um cérebro e dividir pela quantidade média de DNA por célula? O problema com este método é que os neurônios são geneticamente diversificados, o genoma é uma estrutura altamente dinâmica - em constante auto-mutação, para privilegiar ou anular certos genes - e até pequenos erros na medição das quantidades de DNA poderiam invalidar todo o cálculo. Mas serviu para dar à Herculano-Houzel uma ideia melhor: "Dissolva o cérebro, sim! Porém não conte o DNA. Faça a contagem de núcleos! "- os envelopes ricos em proteínas que encerram o genoma de cada célula. Cada célula contém apenas um núcleo. "Um núcleo é um núcleo, e você pode vê-lo", diz ela. "Não há ambiguidade lá."
Ela começou os experimentos com cérebros de ratos, congelando-os em nitrogênio líquido, depois dissolvendo-os por imersão liquidificadora; suas tentativas iniciais espalharam pedaços de tecido neural cristalizado por todo o laboratório. Em seguida, tentou a decapagem de cérebros de roedores em formaldeído, que forma pontes químicas entre proteínas, fortalecendo as membranas dos núcleos. Depois de cortar os cérebros endurecidos em pequenos pedaços, fez um purê usando sabão industrial, pilão e um pote de vidro. O processo dissolveu toda a matéria biológica, exceto os núcleos, reduzindo o cérebro a vários frascos de núcleos flutuantes suspensos num líquido da cor do suco de maçã não filtrado.
Para distinguir entre neurônios e glia, Herculano-Houzel injetou nos frascos um corante químico que fez com que todos os núcleos se tornassem azul-fluorescentes sob a luz ultravioleta e, em seguida, com outro corante, deixou vermelho-brilhante os núcleos dos neurônios. Depois de agitar vigorosamente cada frasco para dispersar uniformemente os núcleos, colocou uma gota de sopa de cérebro em uma lâmina de microscópio. Quando observou através das lentes, os núcleos globulares pareciam fotos de estrelas distantes tiradas pelo Hubble contra o negro veludo do espaço. Contando o número de neurônios e glia em várias amostras de cada frasco, e multiplicando pelo volume total de líquido, deu à Herculano-Houzel seus resultados finais. Ao reduzir um cérebro, em toda a sua complexidade assustadora, a um fluido homogêneo, conseguiu algo sem precedentes. Em menos de um dia, ela determinou com precisão o número total de células no cérebro de um rato adulto: 200 milhões de neurônios e 130 milhões de glia.
Os cérebros de ratos eram apenas o começo. "Quando percebi que realmente podia ser feito," - disse Herculano-Houzel - "havia um mundo inteiro de perguntas lá fora, esperando para ser examinado." Ou seja, havia um planeta inteiro de cérebros para serem dissolvidos.
Em 2016, Herculano-Houzel havia migrado para a Universidade Vanderbilt. Ela publicou estudos sobre o cérebro de mais de 80 espécies. Quanto mais espécies comparadas, mais evidente tornava-se que muito do dogma sobre cérebros e seus componentes celulares estava simplesmente errado. Em primeiro lugar, um cérebro grande não necessariamente tem mais neurônios do que um pequeno. Ela descobriu que algumas espécies têm cérebros especialmente densos, embalando mais células no mesmo volume de tecido cerebral do que suas contrapartes esponjosas. Como regra geral, em virtude de seus neurônios serem, em média, menores, os cérebros de primatas são muito mais densos que outros cérebros de mamíferos. Embora os macacos rhesus tenham cérebros apenas um pouco maiores que os das capivaras, os maiores roedores do planeta, o rhesus possui, no mínimo, uma quantidade seis vezes maior de neurônios.
A técnica da sopa cerebral revelou ainda que o cérebro humano, ao contrário dos números frequentemente citados em livros didáticos e artigos de pesquisa, tem 86 bilhões de neurônios e aproximadamente o mesmo número de glia - e não 100 bilhões de neurônios e trilhões de glia. E os seres humanos certamente não têm a maior quantidade de neurônios: o elefante africano tem cerca de três vezes mais. Quando Herculano-Houzel concentrou-se no córtex cerebral, no entanto - a camada mais enrugada do cérebro - descobriu uma discrepância surpreendente. Os seres humanos têm 16 bilhões de neurônios corticais. Os próximos competidores, orangotango e gorila, têm nove bilhões; os chimpanzés aparecem com seis bilhões. Os seres humanos aparentam possuírem, com grande folga, a maior quantidade de neurônios corticais entre todas as espécies na Terra.
Uma seção transversal de um cérebro humano preservado parece uma fatia de abóbora enrugada, com um interior de tonalidade cremosa ondulante e delineado por uma casca cinza intensamente franzida. Essa casca - composta de camadas de neurônios densamente compactados e glia - é o córtex cerebral. Seus cumes e sulcos profundos aumentam significativamente a superfície total, proporcionando mais espaço para as células se acomodarem dentro dos limites do crânio. Todos os mamíferos têm um córtex, mas a extensão das rugas desse córtex depende da espécie. Esquilos e ratos têm córtices tão suaves quanto as ondas de uma casquinha de sorvete, enquanto os cérebros humanos e de golfinhos parecem montes de macarrão miojo. Ao longo dos anos, alguns pesquisadores propuseram que quanto mais corrugado o córtex, mais células ele conteria, e mais inteligentes seriam essas espécies. Mas ninguém tinha efetuado com precisão a contagem de células para respaldar tais proposições.
Se houvesse um pássaro com um cérebro igual a uma laranja, no entanto, provavelmente governaria o mundo.
O córtex cerebral é a diferença entre impulso e percepção, entre reflexo e reflexão. É essencial para o controle muscular voluntário, percepções sensoriais, pensamento abstrato, memória e linguagem. Talvez o mais intrigante, o córtex cerebral nos permite criar e lidar com uma simulação do mundo tal como é, foi e poderá ser; um teatro interior que podemos alterar a vontade. "O córtex recebe uma cópia de tudo o que acontece no cérebro", diz Herculano-Houzel. "E esta cópia, embora tecnicamente desnecessária, acrescenta imensa complexidade e flexibilidade à nossa cognição. Você pode combinar e comparar informações. Você pode começar a encontrar padrões e fazer previsões. O córtex liberta você do presente. Isso lhe dá a capacidade de olhar para si mesmo e pensar: Isto é o que estou fazendo, mas eu poderia estar fazendo algo diferente. "
A especial densidade do córtex humano vai ao encontro de uma compreensão emergente da inteligência inter espécies: não é que a mente humana seja fundamentalmente distinta das mentes de outros primatas e mamíferos, porém alcança uma nota a mais na melodia. É uma questão de escala, não de substância. Muitas das habilidades mentais, consideradas exclusivamente humanas - criação de ferramentas, resolução de problemas, comunicação sofisticada, autoconsciência - se tornam muito mais difundidas entre os animais do que se pensava anteriormente. Os seres humanos apenas manifestam esses talentos num grau sem paralelo. Herculano-Houzel acha que a explicação mais simples para essa disparidade é o fato de que os seres humanos têm quase o dobro de neurônios corticais do que qualquer outra espécie estudada até agora. Como, então, nossa espécie ganhou uma liderança tão grande?
A explicação padrão para nossa inteligência incomparável é que os humanos ultrapassaram as tendências evolutivas que restringiram outros animais. De alguma forma, talvez por causa de uma feliz mutação genética acidental há milhões de anos, o cérebro humano tenha inflado muito além do normal para um primata do nosso tamanho corporal. Mas as medidas cuidadosas de Herculano-Houzel em dezenas de espécies primatas demonstraram que o cérebro humano não está fora de sincronia com tais espécies. Tanto na massa como no número de células, os cérebros de todos os primatas, inclusive os humanos, seguem uma escala bem definida desde as espécies menores até as maiores, com exceção dos gorilas, orangotangos e chimpanzés. Os grandes macacos, nossos primos evolutivos mais próximos, são as anomalias, com cérebros estranhamente encolhidos, considerando o seu peso geral. Enquanto contemplava essa incongruência, Herculano-Houzel lembrou-se de um livro que lera alguns anos antes: "Pegando fogo: Como cozinhar nos tornou humanos", do antropólogo de Harvard, Richard Wrangham.
Wrangham propôs que o domínio do fogo alterou profundamente o curso da evolução humana, na medida em que os seres humanos "adaptaram-se para comer alimentos cozidos da mesma forma como as vacas são adaptadas para comer pasto, ou pulgas para chupar sangue." Cozinhar neutralizou compostos de plantas tóxicas, quebrou proteínas da carne, tornando todos os alimentos muito mais fáceis de mastigar e digerir, o que significa que recebemos muitas mais calorias de alimentos cozidos do que de seus equivalentes crus. Em razão de nossos sistemas digestivos já não terem que trabalhar tão duro, começaram a diminuir; em paralelo, nossos cérebros cresceram, alimentados por todas essas calorias extras. O cérebro humano constitui apenas 2% do nosso peso corporal, mas exige 20% da energia que consumimos a cada dia.
Herculano-Houzel percebeu que poderia ampliar e modificar esta linha de pensamento. Na natureza, os grandes macacos selvagens modernos, gastam cerca de oito horas por dia se alimentando, apenas para atingir os requisitos mínimos de calorias, e rotineiramente perdem peso quando os alimentos são escassos. No decorrer de sua história evolutiva, desenvolveram corpos muito maiores do que seus antepassados ​​primatas, com órgãos maiores para combinar, enquanto seus cérebros provavelmente atingiram um limite metabólico de crescimento. Os grandes macacos já não conseguiam obter calorias suficientes de plantas cruas para nutrir cérebros que fossem proporcionais à massa total.
Cozinhar liberou nossos antepassados ​​dessa mesma camisa de força fisiológica, e nos colocou de volta no caminho para desenvolver cérebros tão grandes quanto o esperado para os primatas do nosso tamanho. E porque os primatas têm cérebros tão densos, toda essa nova massa cerebral rapidamente adicionou uma grande quantidade de neurônios. Foram necessários 50 milhões de anos para o grupo dos primatas desenvolver cérebros com cerca de 30 bilhões de neurônios. Mas em apenas 1,5 milhão de anos de evolução, o cérebro humano ganhou surpreendentes 56 bilhões de neurônios adicionais. Para usar a metáfora do nosso tempo, a cozinha triplicou o poder de processamento do cérebro humano.
Em última análise, a força central da técnica de sopa de cérebro - seu reducionismo - também é sua fraqueza. Ao transformar uma entidade biológica de complexidade insondável em um pequeno conjunto de números, ela habilita uma ciência anteriormente impossível; ao mesmo tempo, cria a tentação de exaltar esses números. Em seu livro "A vantagem humana", Herculano-Houzel enfatiza a distinção entre capacidade cognitiva e habilidade. Temos cerca do mesmo número de neurônios que os humanos que viveram há 200.000 anos, mas nossas habilidades são muito diferentes. Pelo menos metade da inteligência humana não resulta da biologia, mas da cultura - da linguagem, dos rituais e da tecnologia em que nascemos.
Durante séculos, consideramos o cérebro como uma espécie de máquina: bisonhamente enrolada, mas, no entanto, uma máquina. Se pudéssemos separá-lo, quantificar e examinar todos os seus componentes, poderíamos finalmente explicá-lo. Mas mesmo que pudéssemos contar e classificar cada célula, molécula e átomo, ainda faltaria uma explicação satisfatória para seu comportamento notável. O cérebro é mais que uma coisa; é um sistema. Tanta inteligência não está dentro do cérebro nem em seu ambiente, mas vibra através do espaço intermediário.
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