Para Desbloquear os Mistérios do Cérebro, Esmague-o
Uma neurocientista da Vanderbilt descobriu uma maneira incomum, mas chocantemente eficaz, de estudar o nosso órgão mais enigmático.
Por
Ferris JabrUm
Junho de 2012, no aeroporto internacional de São Paulo, Suzana
Herculano-Houzel carregou duas pesadas malas para uma esteira de
raios-X. À medida que a bagagem passava pelo scanner, os olhos do
agente aduaneiro se arregalaram. As malas não continham roupas,
artigos de higiene pessoal ou qualquer dos acessórios habituais de
viagem. Em vez disso, elas estavam recheadas com mais de duas dúzias
de pacotes curiosamente embrulhados, cada um contendo uma bolha
amorfa suspensa em líquido. O agente pediu que Herculano-Houzel
abrisse as malas, suspeitando que ela estivesse tentando
contrabandear queijo fresco para o país; momentos antes duas pessoas
haviam sido flagradas fazendo exatamente isso.
Ela,
uma neurocientista, explicou que acabara de voltar de uma expedição
de pesquisa incomum, mas completamente legal, na África do Sul, onde
coletou cérebros de diversas espécies: girafas, leões, antílopes,
mangustos, hienas, gnus e ratos do deserto. E estava trazendo os órgãos,
selados em recipientes com anticongelante, de volta ao seu
laboratório no Rio de Janeiro. Os agentes alfandegários analisaram
sua extensa coleção de licenças e documentação, e finalmente a
deixaram passar com as malas no carrinho.
O
cérebro é algo precioso, e contém grande parte dos mistérios não
solucionados da ciência. O que não sabemos sobre o cérebro ainda
esconde muito do que fazemos. Não sabemos como o cérebro gera
consciência. Não temos certeza sobre por que dormimos e sonhamos.
As causas precisas de muitas doenças mentais e distúrbios
neurológicos nos escapam. Qual é a forma física de uma memória?
Temos apenas suspeitas. Ainda não quebramos o código neural: ou
seja, como as redes de neurônios usam sinais elétricos e químicos
para armazenar e transmitir informações. Até muito recentemente -
até Herculano-Houzel publicar uma importante descoberta em 2009 -
nem sequer sabíamos quantas células o cérebro humano continha.
Pensávamos que sabíamos.
Antes
do avanço de Herculano-Houzel, havia uma teoria dominante sobre o
cérebro humano, repetida por cientistas, livros didáticos e
jornalistas. Era a seguinte: grandes cérebros são melhores do que
cérebros pequenos, porque contêm mais neurônios, e, ainda mais
importante; a relação entre o tamanho do cérebro e do corpo. Os
animais mais inteligentes possuem cérebros excepcionalmente grandes
para o seu tamanho corporal. Os seres humanos têm um cérebro sete
vezes maior do que o esperado dado o nosso tamanho total - uma
proporção sem rivais. Então, dizia a teoria, algo deve ter
acontecido no decurso da evolução da espécie para privilegiar o
cérebro humano, inchar suas proporções muito além do que é
típico em outros animais, mesmo os nossos espertos primos macacos e
primatas. Como resultado, nos tornamos os cabeções do reino animal,
com crânios espaçosos o suficiente para acomodar trilhões de
células cerebrais: 100 bilhões de neurônios eletricamente ativos e
10 a 50 vezes mais células de suporte, conhecidas como glia.
Ao
comparar a anatomia do cérebro em um grande número de espécies,
Herculano-Houzel revelou que esta teoria está seriamente equivocada.
Além de derrubar inúmeros pressupostos e mitos sobre o cérebro, e
reescrever algumas das regras fundamentais sobre como esse órgão é
constituído - ela também propôs uma das hipóteses mais coesa e
baseada em evidências para a evolução do cérebro humano até o
presente.
Mas
seus métodos primários são bastante diferentes dos demais em seu
campo. Ela não submete cérebros vivos a eletrodos e scanners.
Também não divide os cérebros em fatias finas, tipo presunto,
cuidadosamente "sanduichadas" entre lâminas de vidro. Nem
conserva o material em frascos de formaldeído para armazenamento de
longo prazo. Em vez disso, prefere desmantelá-los. Cada órgão,
cuidadosamente protegido em sua jornada transatlântica, foi
destinado a ser liquefeito em uma mistura turva que ela chama
carinhosamente de "sopa de cérebro" - a chave de sua
técnica inovadora para entender o que é, indiscutivelmente, o mais
complexo aglomerado de matéria do universo. Desmantelar o cérebro,
permite que ela o reconstrua.
Durante
décadas, o método padrão para contar células cerebrais foi a
estereologia: cortar o cérebro, calcular células em folhas finas de
tecido espalhadas em lâminas de microscópio, e multiplicar esses
números pelo volume da região relevante para obter uma estimativa.
A estereologia é uma técnica trabalhosa que funciona bem para áreas
pequenas e relativamente uniformes do cérebro. Mas muitas espécies
têm cérebros que são simplesmente muito grandes, e complexamente
retorcidos para serem submetidos à estereologia. O uso de
estereologia para fazer um mapa do cérebro humano exigiria uma
quantidade assustadora de tempo, recursos e precisão infalível.
Em
um estudo da década de 1970, Herculano-Houzel descobriu uma curiosa
proposta alternativa à estereologia: por que não medir a quantidade
total de DNA em um cérebro e dividir pela quantidade média de DNA
por célula? O problema com este método é que os neurônios são
geneticamente diversificados, o genoma é uma estrutura altamente
dinâmica - em constante auto-mutação, para privilegiar ou anular
certos genes - e até pequenos erros na medição das quantidades de
DNA poderiam invalidar todo o cálculo. Mas serviu para dar à
Herculano-Houzel uma ideia melhor: "Dissolva o cérebro, sim!
Porém não conte o DNA. Faça a contagem de núcleos! "- os
envelopes ricos em proteínas que encerram o genoma de cada célula.
Cada célula contém apenas um núcleo. "Um núcleo é um
núcleo, e você pode vê-lo", diz ela. "Não há
ambiguidade lá."
Ela
começou os experimentos com cérebros de ratos, congelando-os em
nitrogênio líquido, depois dissolvendo-os por imersão
liquidificadora; suas tentativas iniciais espalharam pedaços de
tecido neural cristalizado por todo o laboratório. Em seguida,
tentou a decapagem de cérebros de roedores em formaldeído, que
forma pontes químicas entre proteínas, fortalecendo as membranas
dos núcleos. Depois de cortar os cérebros endurecidos em pequenos
pedaços, fez um purê usando sabão industrial, pilão e um pote de
vidro. O processo dissolveu toda a matéria biológica, exceto os
núcleos, reduzindo o cérebro a vários frascos de núcleos
flutuantes suspensos num líquido da cor do suco de maçã não
filtrado.
Para
distinguir entre neurônios e glia, Herculano-Houzel injetou nos
frascos um corante químico que fez com que todos os núcleos se
tornassem azul-fluorescentes sob a luz ultravioleta e, em seguida,
com outro corante, deixou vermelho-brilhante os núcleos dos
neurônios. Depois de agitar vigorosamente cada frasco para dispersar
uniformemente os núcleos, colocou uma gota de sopa de cérebro em
uma lâmina de microscópio. Quando observou através das lentes, os
núcleos globulares pareciam fotos de estrelas distantes tiradas pelo
Hubble contra o negro veludo do espaço. Contando o número de
neurônios e glia em várias amostras de cada frasco, e multiplicando
pelo volume total de líquido, deu à Herculano-Houzel seus
resultados finais. Ao reduzir um cérebro, em toda a sua complexidade
assustadora, a um fluido homogêneo, conseguiu algo sem precedentes.
Em menos de um dia, ela determinou com precisão o número total de
células no cérebro de um rato adulto: 200 milhões de neurônios e
130 milhões de glia.
Em
2016, Herculano-Houzel havia migrado para a Universidade Vanderbilt.
Ela publicou estudos sobre o cérebro de mais de 80 espécies. Quanto
mais espécies comparadas, mais evidente tornava-se que muito do
dogma sobre cérebros e seus componentes celulares estava
simplesmente errado. Em primeiro lugar, um cérebro grande não
necessariamente tem mais neurônios do que um pequeno. Ela descobriu
que algumas espécies têm cérebros especialmente densos, embalando
mais células no mesmo volume de tecido cerebral do que suas
contrapartes esponjosas. Como regra geral, em virtude de seus
neurônios serem, em média, menores, os cérebros de primatas são
muito mais densos que outros cérebros de mamíferos. Embora os
macacos rhesus tenham cérebros apenas um pouco maiores que os das
capivaras, os maiores roedores do planeta, o rhesus possui, no
mínimo, uma quantidade seis vezes maior de neurônios.
A
técnica da sopa cerebral revelou ainda que o cérebro humano, ao
contrário dos números frequentemente citados em livros didáticos e
artigos de pesquisa, tem 86 bilhões de neurônios e aproximadamente
o mesmo número de glia - e não 100 bilhões de neurônios e
trilhões de glia. E os seres humanos certamente não têm a maior
quantidade de neurônios: o elefante africano tem cerca de três
vezes mais. Quando Herculano-Houzel concentrou-se no córtex
cerebral, no entanto - a camada mais enrugada do cérebro - descobriu
uma discrepância surpreendente. Os seres humanos têm 16 bilhões de
neurônios corticais. Os próximos competidores, orangotango e
gorila, têm nove bilhões; os chimpanzés aparecem com seis bilhões.
Os seres humanos aparentam possuírem, com grande folga, a maior
quantidade de neurônios corticais entre todas as espécies na Terra.
Uma
seção transversal de um cérebro humano preservado parece uma fatia
de abóbora enrugada, com um interior de tonalidade cremosa ondulante
e delineado por uma casca cinza intensamente franzida. Essa casca -
composta de camadas de neurônios densamente compactados e glia - é
o córtex cerebral. Seus cumes e sulcos profundos aumentam
significativamente a superfície total, proporcionando mais espaço
para as células se acomodarem dentro dos limites do crânio. Todos
os mamíferos têm um córtex, mas a extensão das rugas desse córtex
depende da espécie. Esquilos e ratos têm córtices tão suaves
quanto as ondas de uma casquinha de sorvete, enquanto os cérebros
humanos e de golfinhos parecem montes de macarrão miojo. Ao longo
dos anos, alguns pesquisadores propuseram que quanto mais corrugado o
córtex, mais células ele conteria, e mais inteligentes seriam essas
espécies. Mas ninguém tinha efetuado com precisão a contagem de
células para respaldar tais proposições.
O
córtex cerebral é a diferença entre impulso e percepção, entre
reflexo e reflexão. É essencial para o controle muscular
voluntário, percepções sensoriais, pensamento abstrato, memória e
linguagem. Talvez o mais intrigante, o córtex cerebral nos permite
criar e lidar com uma simulação do mundo tal como é, foi e poderá
ser; um teatro interior que podemos alterar a vontade. "O córtex
recebe uma cópia de tudo o que acontece no cérebro", diz
Herculano-Houzel. "E esta cópia, embora tecnicamente
desnecessária, acrescenta imensa complexidade e flexibilidade à
nossa cognição. Você pode combinar e comparar informações. Você
pode começar a encontrar padrões e fazer previsões. O córtex
liberta você do presente. Isso lhe dá a capacidade de olhar para si
mesmo e pensar: Isto é o que estou fazendo, mas eu poderia estar
fazendo algo diferente. "
A
especial densidade do córtex humano vai ao encontro de uma
compreensão emergente da inteligência inter espécies: não é que
a mente humana seja fundamentalmente distinta das mentes de outros
primatas e mamíferos, porém alcança uma nota a mais na melodia. É
uma questão de escala, não de substância. Muitas das habilidades
mentais, consideradas exclusivamente humanas - criação de
ferramentas, resolução de problemas, comunicação sofisticada,
autoconsciência - se tornam muito mais difundidas entre os animais
do que se pensava anteriormente. Os seres humanos apenas manifestam
esses talentos num grau sem paralelo. Herculano-Houzel acha que a
explicação mais simples para essa disparidade é o fato de que os
seres humanos têm quase o dobro de neurônios corticais do que
qualquer outra espécie estudada até agora. Como, então, nossa
espécie ganhou uma liderança tão grande?
A
explicação padrão para nossa inteligência incomparável é que os
humanos ultrapassaram as tendências evolutivas que restringiram
outros animais. De alguma forma, talvez por causa de uma feliz
mutação genética acidental há milhões de anos, o cérebro humano
tenha inflado muito além do normal para um primata do nosso tamanho
corporal. Mas as medidas cuidadosas de Herculano-Houzel em dezenas de
espécies primatas demonstraram que o cérebro humano não está fora
de sincronia com tais espécies. Tanto na massa como no número de
células, os cérebros de todos os primatas, inclusive os humanos,
seguem uma escala bem definida desde as espécies menores até as
maiores, com exceção dos gorilas, orangotangos e chimpanzés. Os
grandes macacos, nossos primos evolutivos mais próximos, são as
anomalias, com cérebros estranhamente encolhidos, considerando o seu
peso geral. Enquanto contemplava essa incongruência,
Herculano-Houzel lembrou-se de um livro que lera alguns anos antes:
"Pegando fogo: Como cozinhar nos tornou humanos", do
antropólogo de Harvard, Richard Wrangham.
Wrangham
propôs que o domínio do fogo alterou profundamente o curso da
evolução humana, na medida em que os seres humanos "adaptaram-se
para comer alimentos cozidos da mesma forma como as vacas são
adaptadas para comer pasto, ou pulgas para chupar sangue."
Cozinhar neutralizou compostos de plantas tóxicas, quebrou proteínas
da carne, tornando todos os alimentos muito mais fáceis de mastigar
e digerir, o que significa que recebemos muitas mais calorias de
alimentos cozidos do que de seus equivalentes crus. Em
razão de nossos sistemas digestivos já não terem que trabalhar tão
duro, começaram a diminuir; em paralelo, nossos cérebros cresceram,
alimentados por todas essas calorias extras. O cérebro humano
constitui apenas 2% do nosso peso corporal, mas exige 20% da energia
que consumimos a cada dia.
Herculano-Houzel
percebeu que poderia ampliar e modificar esta linha de pensamento. Na
natureza, os grandes macacos selvagens modernos, gastam cerca de oito
horas por dia se alimentando, apenas para atingir os requisitos
mínimos de calorias, e rotineiramente perdem peso quando os
alimentos são escassos. No decorrer de sua história evolutiva,
desenvolveram corpos muito maiores do que seus antepassados
primatas, com órgãos maiores para combinar, enquanto seus
cérebros provavelmente atingiram um limite metabólico de
crescimento. Os grandes macacos já não conseguiam obter calorias
suficientes de plantas cruas para nutrir cérebros que fossem
proporcionais à massa total.
Cozinhar
liberou nossos antepassados dessa mesma camisa de força
fisiológica, e nos colocou de volta no caminho para desenvolver
cérebros tão grandes quanto o esperado para os primatas do nosso
tamanho. E porque os primatas têm cérebros tão densos, toda essa
nova massa cerebral rapidamente adicionou uma grande quantidade de
neurônios. Foram necessários 50 milhões de anos para o grupo dos
primatas desenvolver cérebros com cerca de 30 bilhões de neurônios.
Mas em apenas 1,5 milhão de anos de evolução, o cérebro humano
ganhou surpreendentes 56 bilhões de neurônios adicionais. Para usar
a metáfora do nosso tempo, a cozinha triplicou o poder de
processamento do cérebro humano.
Em
última análise, a força central da técnica de sopa de cérebro -
seu reducionismo - também é sua fraqueza. Ao transformar uma
entidade biológica de complexidade insondável em um pequeno
conjunto de números, ela habilita uma ciência anteriormente impossível; ao mesmo tempo, cria a tentação de exaltar esses
números. Em seu livro "A vantagem humana",
Herculano-Houzel enfatiza a distinção entre capacidade cognitiva e
habilidade. Temos cerca do mesmo número de neurônios que os humanos
que viveram há 200.000 anos, mas nossas habilidades são muito
diferentes. Pelo menos metade da inteligência humana não resulta da
biologia, mas da cultura - da linguagem, dos rituais e da tecnologia
em que nascemos.
Durante
séculos, consideramos o cérebro como uma espécie de máquina:
bisonhamente enrolada, mas, no entanto, uma máquina. Se pudéssemos
separá-lo, quantificar e examinar todos os seus componentes,
poderíamos finalmente explicá-lo. Mas mesmo que pudéssemos contar
e classificar cada célula, molécula e átomo, ainda faltaria uma
explicação satisfatória para seu comportamento notável. O cérebro
é mais que uma coisa; é um sistema. Tanta inteligência não está
dentro do cérebro nem em seu ambiente, mas vibra através do espaço
intermediário.
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