Entrevista com Charlotte Mandell: “Nossa linguagem é moldada pela linguagem dos outros.”
Charlotte Mandell é tradutora literária francesa, nascida em Hartford, Connecticut, em 1968. Estudou na Boston Latin High School, na Université de Paris III, e na Bard College, onde se formou em literatura francesa e teoria cinematográfica.
Em abril de 2021 foi homenageada pelo governo francês com o Chevalier de l'Ordre des Arts et des Lettres. Mora no Vale Hudson com o marido, o poeta Robert Kelly.
— Oi, Charlotte. Muito bom tê-la aqui conosco hoje, estou super interessado em seu trabalho como tradutora. Para aqueles que talvez não a conheçam, fale um pouco sobre você?
— Obrigada pelo convite. É uma honra estar aqui. Sou tradutora literária há trinta anos e já traduzi mais de quarenta livros, incluindo obras de Maurice Blanchot, Jean-Luc Nancy, Paul Preciado, Jonathan Littell e Mathias Énard. Minha tradução de Compass, de Mathias Énard,foi pré-selecionada para o Prêmio Internacional Man Booker e recebeu o Prêmio Nacional de Tradução, em 2018. Em abril de 2021 fui homenageada pelo governo francês com o Chevalier de l'Ordre des Arts et des Lettres.
— Você está no processo de traduzir Marcel Proust In the Shadow of Young Women in Flower. Pode falar sobre como um projeto assim começa e os vários obstáculos ao longo do caminho? Perdoe minha ignorância, mas não imagino que seja tão simples quanto apenas traduzir palavras em uma página.
— As frases de Proust são intrincadas, complexas e podem incluir muitas orações e digressões subordinadas. O desafio para mim é acompanhar a sintaxe dele o mais de perto possível, para que vejamos o processo de pensamento por trás da construção das frases, como as coisas são encadeadas. Proust é famoso por sua capacidade de mostrar, por escrito, como uma pessoa pensa; não conheço nenhum outro autor que possa dissecar um único pensamento, uma única memória, tão precisa e minuciosamente, com tal discernimento e sensibilidade.
Meu desafio como tradutora é tentar seguir a própria maneira de pensar de Proust o mais de perto e fielmente possível, com o menor número possível de distrações e interpolações. Quero que as frases falem por si mesmas – não pretendo adicionar ou tirar nada. É definitivamente um desafio tentar ser o mais simples e, ao mesmo tempo, transmitir um pensamento ou ideia incrivelmente complexa.
Uma das coisas que torna as intrincadas e longas frases de Proust um pouco mais fáceis de seguir em francês é a existência de substantivos de gênero desse idioma. Parece uma coisa tão simples - une pomme (uma maçã, feminina), un jour (um dia, masculino), mas quando esse substantivo é seguido por um adjetivo que tem que concordar com o substantivo, torna mais fácil para um leitor francês saber quais adjetivos combinam com quais substantivos.
Como não temos substantivos de gênero em inglês, pode ser difícil esclarecer o referente, especialmente porque um predicado pode chegar muito tarde em uma sentença proustiana, quando já se esqueceu do assunto. Existem maneiras de contornar essa confusão (repetir o assunto ou, se absolutamente necessário, alterar a sintaxe ao redor para que o adjetivo fique mais próximo do substantivo), mas é um desafio.
— Como é um dia de trabalho típico para você?
— Eu sou uma pessoa mais da noite do que do dia, então, geralmente me deito tarde e levanto tarde —gostaria que fosse de outra forma — amo as manhãs e gostaria de poder aproveitá-las mais. Então, tomo um café da manhã/ brunch tardio e depois vou dar uma caminhada (vivemos em uma bela região do Vale Hudson, perto do Bard College).
Começo a trabalhar no final da tarde, após minha caminhada; trabalharei na minha mesa (no andar de cima, olhando para as árvores de faia e gafanhotos e um pequeno parque triangular) até o jantar. Às vezes ouço música clássica enquanto trabalho - costumava ouvir óperas bel canto, Bellini, Rossini, Donizetti - ou sonatas de piano de Bach ou Beethoven - mas ultimamente, com Proust, sinto que preciso trabalhar em silêncio, me concentrar nas frases dele. Se tiver que ouvir alguma coisa enquanto traduzo Proust, seria A Arte da Fuga, de Bach, que é uma espécie de equivalente musical das frases de Proust.
— Você tem uma contagem de palavras como alvo ou número de páginas que gostaria de traduzir todos os dias?
— Depende do livro - com um romance comum, tento fazer pelo menos dez páginas por dia, às vezes mais – costumo não trabalhar muito rapidamente. Com Proust, faço muito menos -talvez 1500 palavras por dia, mais ou menos quatro páginas. Cada frase leva tanto tempo!
— Qual você diria ter sido a experiência de tradução mais agradável até o momento?
— Adorei traduzir o romance de 500 páginas de Mathias Énard, Zone. Foi em um trem Milão-Roma (o número de páginas, 513, é o mesmo que o número de quilômetros entre as duas cidades), e tem o mesmo tipo de ritmo propulsivo e energético que um trem rápido. Como não há períodos, não há parada óbvia, então tive que me forçar a parar de traduzir no final do dia, antes de ficar muito cansada.
Entrei em uma espécie de estado de transe enquanto o traduzia, do qual era difícil emergir ao final do dia. Além disso, tenho por princípio nunca ler à frente, de modo que o texto que estou traduzindo é sempre fresco e emocionante; no caso de Zone, continuei querendo descobrir o que vinha a seguir. Sinto saudades dessa experiência. Também adorei traduzir Bússola, de Énard, que, embora tenha períodos, está escrita no mesmo tipo de narrativa de fluxo de consciência.
— Se você pudesse dar apenas um conselho para alguém tentando entrar no campo da tradução, qual seria?
— Leia o máximo que puder, em qualquer idioma que conheça (e até em alguns que você não domina). Um tradutor, como um autor, é um prisma de tudo o que já leu; nossa linguagem é moldada pela linguagem dos outros, assim como nós mesmos somos moldados pelos outros. E então (desculpe, dois conselhos): Encontre um autor que não seja bem conhecido e que ainda não tenha sido traduzido para o seu idioma; leia o máximo possível desse autor, traduza uma passagem favorita e envie o trecho para várias revistas e editores. Ajuda ser apaixonada pelo trabalho que se está traduzindo.
— Como é o seu espaço de trabalho de tradução?
— Não é muito grande, e um pouco mais confuso do que eu gostaria que fosse - costumo coletar coisas (rochas e conchas, principalmente), então, no meu caso, mais é definitivamente mais. Tem duas janelas - uma voltada para o leste, a outra para o norte – assim, recebe muita luz. Há uma estante cheia de livros franceses (principalmente ficção e poesia), outra com livros de referência e meu conjunto completo de Le Grand Robert (um dicionário francês muito bom), mais uma com todos os livros no original que traduzi, juntamente com minhas traduções. Também um monte de CDs, que nem costumo tocar muito. Algumas fotos da minha mãe, Betty Reid, no rancho em Colorado onde ela cresceu; do meu pai, Marvin Mandell, quando era soldado do exército durante a Segunda Guerra Mundial; do nosso amigo William Weaver, o grande tradutor de italiano, que me deram depois que ele morreu; e do meu marido, o poeta Robert Kelly.
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