terça-feira, 10 de setembro de 2019

As vírgulas que custam milhões às empresas

The commas that cost companies millions


Para a maioria das pessoas, uma vírgula perdida não é o fim do mundo. Mas em alguns casos, o posicionamento exato de um sinal de pontuação pode significar enormes somas de dinheiro.

Por Chris Stokel-Walker

23 de julho de 2018


Estamos nos despedindo de 2018 com alguns dos maiores sucessos da BBC Capital no ano passado. Com essas histórias convincentes, dicas indispensáveis e insights de especialistas, você estará pronto para tornar 2019 o melhor possível.
Quanto uma vírgula perdida pode custar?
Se você estiver enviando mensagens de texto para um ente querido ou e-mail para um colega, o custo de errar na pontuação será - na pior das hipóteses - um rosto vermelho e uma confusãozinha sem importância.
Mas, para alguns, pode significar um caminho doloroso rumo à casa da amargura.
Uma empresa de laticínios na cidade de Portland, no Maine, Estados Unidos, envolveu-se em um processo de US $ 5 milhões no início deste ano por causa de uma vírgula perdida.
Três motoristas de caminhões da Oakhurst Dairy alegaram que eram credores de anos de salários adicionais, tudo por causa da forma como as vírgulas eram usadas na legislação que rege o pagamento de horas extras.
As leis do estado declaravam que as horas extras não eram devidas a trabalhadores envolvidos em “enlatamento, processamento, conservação, congelamento, secagem, comercialização, armazenamento, embalagem para embarque ou distribuição de: 1) produtos agrícolas; 2) carne e produtos de peixe; e 3) alimentos perecíveis”.
Os motoristas argumentaram com sucesso que, como não havia vírgula após “embarque” e antes de “ou distribuição”, eles deveriam receber pagamento de horas extras. Se uma vírgula estivesse lá, a lei teria explicitamente descartado aqueles que distribuem alimentos perecíveis.

Como houve confusão, o Tribunal de Apelações dos EUA decidiu a favor dos reclamantes, beneficiando cerca de 120 dos motoristas da empresa. David Webbert, advogado que ajudou a levar o caso contra a empresa, disse aos repórteres, na época, que a inclusão de uma vírgula na cláusula "teria afundado nosso barco". (Ele não respondeu aos pedidos de entrevista da BBC.)


O menor erro de pontuação em um contrato pode ter consequências inesperadas em grande escala

O deslize mostra que o menor erro em pontuar uma cláusula de um contrato pode ter consequências não intencionais massivas.
A pontuação é importante”, diz Ken Adams, autor de "Um manual de estilo para redigir contratos". Mas nem todas as pontuações são iguais: campos minados contratuais não são semeados com ponto e vírgula ou traços (aqui está um - ) esperando para explodir ao se tropeçar.
"Tudo se resume à vírgulas", diz Adams. "Elas são importantes, e exatamente como, vai depender do contexto."
Entregando definição
Vírgulas em contratos ligam cláusulas separadas de forma não definitiva, deixando sua leitura aberta à interpretação. Enquanto um ponto final é literalmente aquilo - uma completa e total parada para um pensamento ou sentença, e uma indicação para o começo de outro - as vírgulas ocupam um meio termo linguístico, e que é muitas vezes confuso. “As vírgulas são um aval para a confusão sobre qual parte de uma sentença se relaciona com o quê”, explica Adams.

Ocupam um meio-termo linguístico, geralmente bem confuso

A língua inglesa é fluida, em evolução e altamente subjetiva. Argumentos têm sido discutidos sobre o valor das chamadas vírgulas de Oxford (uma vírgula opcional antes da palavra “and” ou “or” no final de uma lista). Podem haver bons argumentos em ambos os lados do debate, mas isso não funciona para a lei porque é preciso ter uma resposta definitiva: sim ou não. Em acordos legais de alto risco, a forma como as vírgulas são utilizadas é crucial para o seu significado. E no caso da Oakhurst Dairy contra os motoristas de entrega, a vírgula de Oxford é julgada como tendo favorecido o propósito destes últimos.
Só porque você quer dizer alguma coisa, não significa que um tribunal concordará, diz Jeff Nobles, advogado de apelação do Texas envolvido em um processo de seguro que dependia, em parte, da pontuação de um contrato.
De acordo com Nobles, a maioria dos tribunais dos EUA dirá que realmente não importa o que as partes pretendiam subjetivamente; e sim a intenção objetiva nos termos escritos de seu contrato. “A pontuação às vezes altera o significado de uma frase”, diz ele.
Nobles representou uma companhia de seguros em um caso no Supremo Tribunal do Texas referente à cobertura de seguro para um empregado que morreu no trabalho.
Nobles argumentou, com sucesso, que a pontuação era importante para uma cláusula de indenização contratual, quando a empresa tentou acionar a cobertura sob sua apólice de seguro depois que um funcionário subcontratado morreu no trabalho. Isso estabeleceu um precedente no sistema legal do estado, ele acredita.
O advogado diz que os tribunais dos EUA se tornaram cada vez mais textuais - "eles olham cada vez mais para as palavras registradas no papel, em vez do testemunho das pessoas que registraram essas palavras no documento."
No entanto, as discussões sobre as vírgulas acontecem há mais de um século.
Uma vírgula cara
Em 1872, uma lei tarifária americana com uma vírgula indesejada custou aos contribuintes cerca de US $ 2 milhões (o equivalente a US $ 40 milhões hoje). A Lei de Tarifas dos Estados Unidos, como originalmente redigida em 1870, permitia que “plantas frutíferas, tropicais e semi-tropicais com propósitos de propagação ou cultivo” estivessem isentas de tarifas de importação.
Por uma razão desconhecida, quando revisada dois anos depois, uma vírgula vadia deslizou entre “frutíferas” e “plantas”. De repente, todas as frutas tropicais e semi-tropicais puderam ser importadas sem qualquer custo.

Membros do Congresso dos EUA debateram a questão e o problema foi resolvido – mas não antes do New York Times lamentar o uso de Uma Vírgula Cara”

Não seria o último erro desse tipo.

Linguagem de contrato é como código de software: faça certo e tudo funciona bem. Mas cometa um erro de digitação e a coisa toda desmorona

A linguagem dos contratos é limitada e estilizada”, diz Adams. Cabe uma comparação com código de software: faça certo e tudo funciona bem. Mas cometa um erro de digitação e a coisa toda desmorona.
Quando erros são introduzidos em documentos legais, provavelmente serão notados muito mais do que em qualquer outra forma de escrita, diz ele. “As pessoas são mais propensas a brigar em razão de instâncias de ambiguidade sintática do que em outros tipos de escrita.”
Nublando as águas
É claro que, em algumas circunstâncias, as elaborações de contratos podem introduzir ambiguidades. Conseguir que diferentes países assinem os mesmos princípios pode ser um desafio, particularmente para os acordos sobre mudanças climáticas.
Convenções iniciais sobre mudanças climáticas incluíram esta linha:
As partes têm o direito a, e devem, promover o desenvolvimento sustentável.”
A sentença garante que os signatários do acordo têm a capacidade de promover o desenvolvimento sustentável – e devem fazê-lo.
Mas em sua versão original, a segunda vírgula foi colocada depois da palavra “promover”, não antes dela:
As partes têm o direito a, e devem promover, o desenvolvimento sustentável."
Alguns países não ficaram satisfeitos com a redação original porque não queriam necessariamente ficar presos à promoção do desenvolvimento sustentável. Mover a vírgula manteve os pessimistas felizes enquanto aplacava aqueles que queriam uma ação mais forte.

"Sendo um tanto quanto criativo com a pontuação, os países puderam sentir que seus interesses foram abordados", explica Stephen Cornelius, assessor-chefe sobre mudanças climáticas da WWF, que representou o Reino Unido e a UE nas negociações da ONU sobre mudanças climáticas. "Você está tentando chegar a um acordo no qual as pessoas possam concordar substancialmente."


Truques de negócios

Essa flexibilidade linguística acontece com mais frequência do que se imagina.
Na diplomacia, mesmo que se tente um único acordo, é muito comum haver significados diversos para diferentes partes”, diz a negociadora de mudança climática Laura Hanning Scarborough. “Pode se usar termos como 'inter alia', ou 'isso inclui, entre outras coisas', para desfocar as linhas e incluir qualquer coisa. Você pode usar vírgulas como parte disso também. Existem muitos truques de linguagem que se usam para apaziguar as pessoas. ”
Para a maioria dos envolvidos, no entanto, é importante garantir que os contratos não sejam ambíguos. Por essa razão, é crucial testar a linguagem contratual ao ponto de ruptura, dando-a a alguém que testará seus limites - alguém que a lerá da maneira mais inadequada e inútil, diz Tiffany Kemp, instrutora de contratação comercial da Associação Internacional para Contrato e Gestão Comercial.
Uma das maiores batalhas em torno de uma vírgula foi uma disputa entre duas empresas de telecomunicações canadenses. A Rogers Communications e a Bell Aliant travaram uma batalha legal no valor de CAD$ 1 milhão (US $ 760.000) por um contrato para substituir postes de serviços públicos em todo o país.
A argumentação foi provocada por uma única frase:
Este contrato será efetivo a partir da data em que é feito e continuará em vigor por um período de cinco (5) anos a partir da data em que é feito, e posteriormente por períodos sucessivos de cinco (5) anos, a menos e até que seja rescindido por notificação prévia de um ano escrita por qualquer das partes."
Os dois lados argumentaram que a vírgula depois de "cinco (5) anos" significava algo diferente: a Bell Aliant disse que o aviso prévio de um ano para o término seria aplicado a qualquer momento; Rogers só o aplicava após o primeiro mandato de cinco anos.
Isso era importante, já que Rogers havia investido muito com base na sua leitura do contrato: quando assinaram um contrato para arrendar os postes da Bell Aliant em 2002, estavam pagando apenas CAD $ 9,60 por poste. Em 2004, o custo quase dobrou. A Bell Aliant, compreensivelmente, queria rescindir o contrato e renegociar com o novo preço mais alto. Rogers não.
Tribunais sucessivos estavam igualmente incertos sobre o acordo: a Comissão de Rádio-Televisão e Telecomunicações do Canadá declarou pela primeira vez a favor da Bell Aliant em 2006; um ano depois, mudou de ideia após consultar a versão em francês do contrato, que não incluía a mesma ambiguidade.
Essa disputa não foi provocada por má fé, avalia Kemp. “Às vezes há entendimentos genuinamente diferentes”, explica ela. “Essa pequena vírgula foi colocada em um local adequado a uma pausa para respirar, caso estivéssemos lendo em voz alta.”
Pontuação mortal
Como podem essas vírgulas mal colocadas ou usadas incorretamente fazerem parte de contratos complicados elaborados por profissionais? Parte do problema, diz Adams, é a tecnologia. “A elaboração de contratos vem sendo uma antiga prática de copiar e colar de documentos precedentes, e isso resulta em uma espécie de negligência, um distanciamento do âmago da questão de se expressar o que realmente se deseja expressar”, diz ele. "É fácil descartar esse tipo de problema."

Em um exemplo extremo, uma vírgula fora de lugar ocupou o centro das atenções em um julgamento de pena de morte

Em um exemplo extremo, uma vírgula fora de lugar estava no centro de um julgamento por pena de morte. Roger Casement, um nacionalista irlandês, foi enforcado em 1916 por força do Ato de Traição 1351. Ele incitou os prisioneiros de guerra irlandeses mantidos na Alemanha a se unirem para lutar contra os britânicos. O debate sobre se Casement era culpado dependia da redação do Ato de Traição datado do Século XIV e do uso de uma vírgula: com isso, as ações de Casement na Alemanha eram ilegais; sem isso, ele se safaria.

Apesar da afirmação do advogado de Casement de que "os crimes não devem depender do significado de pausas ou de vírgulas", e "se um crime dependesse de uma vírgula, o assunto deveria ser determinado em favor do acusado, e não da Coroa", o tribunal decidiu que a vírgula importava. Casement foi considerado culpado e executado.

Embora hoje a vida e a morte não dependam do uso de vírgulas - muito dinheiro, apólices de seguro e acordos ambientais certamente dependem.
Por essa razão, é importante verificar com cuidado todos os contratos que assinamos, dizem os especialistas - e isso significa não apenas esmiuçar os termos, mas também garantir que cada vírgula esteja no lugar correto.
As pessoas assinam contratos não porque negociaram seus significados, mas com base em seu próprio entendimento sobre com o que estão concordando, explica Nobles. Contratos escritos por advogados em nome de um negócio podem ter um significado diferente do que o leigo entende.
Então, vale a pena prestar atenção. Se uma pontuação parecer fora de lugar ou apresentar ambiguidade, fale.
O objetivo de um contrato é ajudar as pessoas a obterem os resultados desejados e saberem o que devem fazer e esperar da outra parte”, diz Kemp.
Se há um mal-entendido, as partes devem agir para resolver o problema. Tenha a discussão hoje, em vez de deixar para amanhã."
Isso pode evitar muita dor no futuro.
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