As sedutoras armadilhas da linguagem
Traduzido por Eduardo Rodrigues, do original em : https://medium.com/antidotes-for-chimps/the-bewitching-trickery-of-language-d678bebdc0d4
A
linguagem é uma coisa maravilhosa. Ela nos permite categorizar,
simplificar e descrever nosso universo complexo e confuso aplicando
palavras a objetos e ações que, de outra forma, permaneceriam como
bolhas incomuns de formas e cores inconstantes e indefinidas. A
linguagem traz ordem, formando uma bela e intricada estrutura que
usamos para criar o entendimento comum dentro da nossa espécie,
abrindo caminho para o domínio do ambiente em que vivemos.
A
língua é uma das nossas grandes habilidades, mas há uma
desvantagem. Está tão profundamente enraizada em nossa natureza, sendo usada de forma tão liberal, que muitas vezes esquecemos que sua
principal função é descrever
o
mundo. Confundimos a palavra descritiva que sai da nossa boca com a
própria coisa descrita, como se a palavra fosse mais real do que aquilo que
estamos descrevendo. Uma vaca não é a palavra vaca;
é
a coisa corpulenta, em preto e branco, com as tetas roseadas e parada
bem na sua frente. A palavra vaca
é
apenas um rótulo que usamos para identificar algo, não a coisa em
si.
A
confusão entre expressão e realidade foi ilustrada maravilhosamente
pelo artista francês Rene Magritte, que pintou um cachimbo com as
palavras “isso não é um cachimbo”, lembrando habilmente ao
espectador que a imagem do cachimbo não
é um
cachimbo de verdade, assim como a palavra vaca
não
é uma vaca real, mas simplesmente um ruido útil que usamos para
nos expressar.
Outro
grande exemplo pode ser encontrado no estudioso da semântica, Alfred
Korzybski, que observou: “o mapa não é o território”;
destacando a confusão comum entre modelos de realidade (o mapa) com
a própria realidade (o território). O mapa é puramente uma
representação
da
paisagem, assim como a palavra vaca
é
uma representação de um enorme animal que exala metano e que nada
mais gosta de fazer a não ser passar o dia pastando e mugindo.
Confundir
o rótulo/representação com a coisa real que está sendo descrita
pode ter a consequência lamentável de diminuir nossa apreciação,
reduzindo-a a nada mais que a uma mera abstração. O som que
emitimos quando pronunciamos "vaca",
nunca será tão maravilhosamente complexo quanto a coisa real que
estamos identificando, e enquanto a linguagem é eficaz em
categorizar nosso mundo, ela pode ter o infeliz efeito colateral de
remover todo o senso de profundidade e curiosidade do objeto
observado. Na realidade, uma vaca é uma maravilha natural que pode
pesar mais de 1300 kg, tem visão panorâmica de 360 graus e pode
sentir o cheiro de algo a mais de 9 km de distância. A palavra vaca é apenas uma abstração útil - ótima para simplificação, mas com o lado negativo de nos cegar para a maravilhosa minúcia do próprio animal em si. À medida que simplificamos, depreciamos.
"Sentenças
são apenas uma aproximação, uma rede abraçando uma frágil pérola
do mar que a qualquer momento pode desaparecer." - Virginia
Woolf
Pode-se
dizer que o copo em que estou bebendo agora é apenas
um copo, mas também é uma invenção com uma história de quase 4000 anos, originada na quente Índia, avançando em direção à Europa rumo ao poderoso Império Romano, estabelecendo-se como um recipiente útil para beber e usado por bilhões de pessoas em todo o mundo. É muito mais do que apenas um copo. Reduzindo algo a uma única palavra e confundindo a palavra com a própria coisa, somos compelidos a esquecer ricas histórias e características marcantes, e acabamos por achar isso normal.
Linguagem
não é realidade. Quando percebemos isso, somos trazidos para mais perto da realidade; somos obrigados a reconhecer que os sons que proferimos são uma mera representação, com o mundo real bem diante de nossos olhos. As palavras criam uma ilusão impressionante e convincente na qual chegamos a identificar tudo no mundo real como nada além de uma coleção de letras murmuradas - curtas, compartimentadas e chatas.
"Para enxergar a verdade, você precisa escapar da selva das palavras" - Bharath Gollapudi, Quora
A obra-prima de Sam Mendes, Beleza americana, nos lembra a complexidade deslumbrante do nosso mundo, encorajando-nos a olhar mais de perto - um convite para expandir as breves e curtas avaliações das coisas e conseguir entender melhor a beleza oculta.
“Era
um daqueles dias em que fica a um minuto de nevar e há essa
eletricidade no ar, você quase pode ouvir. Certo? E essa bolsa
apenas dançava comigo. Como uma criancinha me implorando para
brincar. Por quinze minutos. Foi o dia em que percebi que havia toda
essa vida por trás das coisas, e essa incrível força benevolente
querendo que eu soubesse que não havia razão para ter medo, nunca.
O vídeo é uma desculpa ruim, eu sei. Mas isso me ajuda a lembrar
... Eu preciso lembrar ... Às vezes há tanta beleza no mundo, sinto
que não posso lidar com isso, e meu coração vai desmoronar. ”-
Ricky
Fitts, American Beauty
Há
uma vida
inteira por
trás das coisas - detalhes infinitos e fascinantes, aos quais temos
melhor acesso se nos lembrarmos de que a palavra
não é a coisa.
Até mesmo algo aparentemente tão banal quanto uma sacola plástica,
dançando ao vento, pode ser de uma beleza arrebatadora. Apenas
temos que olhar mais de perto.
Um
tema semelhante pode ser encontrado no impressionante filme
Birdman,
de Alejandro Iñárritu. Durante
uma cena, o ator protagonista, Thomson Riggan, se enfurece com a vilã
crítica, Tabitha Dickinson, acusando-a de confundir palavras e
rótulos com a realidade que representam:
“Vamos ler a sua porra de revisão. 'Callow' Callow é um rótulo. É apenas isso… "Lackluster". Isso não passa de um rótulo. Margin... marginalia. Você está brincando comigo? Parece que você precisa de penicilina para entender isso. Isso é um rótulo também. Todos estes são apenas rótulos. Você acabou de rotular tudo. Isso é de uma displicência da porra... Você apenas… Você é uma filha da puta preguiçosa. Você é uma preguiçosa… [pega uma flor] Você sabe o que é isso? Você pelo menos sabe o que é isso? Você não sabe, e sabe por quê? Porque você não consegue enxergar se não puder rotular. Você confunde todos esses pequenos ruídos na sua cabeça com o verdadeiro conhecimento. ”- Riggan Thomson, Birdman
Para
Riggan, a crítica que promete “matar sua peça” é uma fraude,
deixando de olhar além das descrições abruptas para uma verdade
mais profunda, pois que ela é muito preguiçosa e complacente para
vislumbrar. Como escritor, Dickinson está tão imersa no mundo da
linguagem que é incapaz de separar as palavras da realidade,
escolhendo bombardear Riggan e sua peça antes mesmo que seja
assistida. Este é apenas um pequeno e sutil elemento de um tema
importante do filme - a confusão da fantasia e da realidade. Embora
Riggan frequentemente se aprofunde em fantasia, passando por proezas
impossíveis tais como mover objetos com a mente, ele está ciente do
potencial sedutor das palavras, tanto que mantém um alerta em sua
escrivaninha que diz “Uma coisa é uma coisa, não o que é dito
daquela coisa ”.
Se
queremos aumentar o valor do nosso mundo diante de nossos olhos,
devemos nos lembrar de que a palavra
não é a coisa. Isso
não quer dizer que devemos passar nossos dias vagando de objeto em
objeto, de boca aberta sobre tudo que encontramos. Precisamos de
clareza semântica, concisão. Mas se fizermos uma pausa de vez em
quando e examinarmos nosso mundo um pouco mais de perto, nosso
abençoado senso de apreciação aumentará, e lentamente nos
tornaremos mais agradecidos por esse mundo espetacular e fascinante
em que estamos vivendo.
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