DUBLINERS
James Joyce
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tradução: Eduardo Rodrigues (ainda não revisada)
tradução: Eduardo Rodrigues (ainda não revisada)
AS IRMÃS
Não havia esperança para ele desta
vez: foi o terceiro derrame. Noite após noite eu passava pela casa
(estava de férias) e observava a janela iluminada. Percebi que nada
se alterava naquele quadrado de uma luz suave e sempre igual. Se
ele estivesse morto, pensei, eu veria o reflexo das velas na
escuridão, pois sabia que duas delas eram colocadas na cabeceira
onde ficavam os defuntos. Achava que quando ele me dizia que não
ficaria muito tempo nesse mundo, fosse da boca pra fora. Mas agora
sei que não. Todas as noites, enquanto ficava olhando aquela janela
no alto, uma palavra insistia em surgir na minha mente: paralisia.
Era uma palavra que sempre soou estranha aos meus ouvidos, da mesma
forma que gnômon em Euclides e simonia no catecismo. Mas agora dava
a impressão de ser o nome de algum ser maléfico e pecaminoso. Todo
esse clima ao mesmo tempo que enchia de medo, exercia uma atração
que despertava minha vontade de estar por perto daqueles preparativos
funerários.
Quando desci as escadas para o
jantar, o velho Cotter estava sentado e fumando junto à lareira.
Enquanto minha tia preparava meu prato, ele disse, como se estivesse
retomando um assunto há pouco interrompido:
'Não, Eu não diria que ele era
exatamente. . . mas havia algo esquisito. . .havia algo diferente
nele. Eu vou te falar a minha opinião. . .'
E como que para ganhar tempo de
organizar as ideias, começou a pitar seu cachimbo. Velho idiota!
Quando nós o conhecemos até que costumava ser interessante falando
sobre fabricação de bebidas alcoólicas. Mas logo me cansei dele e
de suas histórias sobre destilarias.
'Eu tenho minha teoria sobre isso',
disse. 'Eu penso que era um desses casos esquisitos . . .mas é
difícil dizer . . .'
E então começou a pitar de novo
sem nos contar sua teoria. Meu tio virou-se para mim e disse:
'Bem, então seu velho amigo se foi,
você ficou triste de saber.'
'Quem?' perguntei.
'Padre Flynn'
'Ele morreu?'
'Foi isso que o Senhor Cotter
acabou de nos dizer. Ele estava passando pela casa'
Eu sentia que estava sendo
observado, então continuei comendo como se a notícia não me
interessasse. Meu tio explicou ao velho Cotter:
'O jovem aqui e o padre eram grandes
amigos. O velho o ajudou com os estudos e disseram que tinha grande
consideração por meu sobrinho”.
'Deus tenha piedade de sua alma',
falou minha tia, piedosamente.
Cotter me olhou por um instante.
Senti que seus olhos negros brilhavam enquanto me examinava, mas não
ia lhe dar a satisfação de me ver levantar os olhos e encará-lo de
volta.
Voltou ao seu cachimbo e logo em
seguida cuspiu grosseiramente na lareira.
'Eu não gostaria que uma criança
minha,' ele disse, ' ficasse de conversa com um homem como aquele.'
'O que o senhor quer dizer, Mr.
Cotter?' perguntou minha tia.
'Eu quero dizer que é ruim para uma
criança. Meu pensamento é: deixe um jovem com outros jovens, de sua
mesma idade, nada mais....estou certo Jack?'
'É desse jeito que eu penso
também,' disse meu tio. 'Deixe-o com as coisas de sua idade. É
o que tenho dito sempre aos Rosacruzes: se exercitem. Porque quando
eu era um garoto, tomava banho frio todas as manhãs, fosse inverno
ou verão. E é o que me mantém de pé até hoje. Disciplina é
tudo....' então virando-se para minha tia, acrescentou: 'Mr. Cotter
talvez queira um pedaço da perna de carneiro.'
'Não...não, não para mim,' falou
o velho Cotter
Minha tia trouxe a travessa e a
colocou na mesa.
'Mas por que acha que não é bom
para as crianças, Mr. Cotter?' ela perguntou.
'É ruim porque suas mentes são
muito impressionáveis. Quando uma criança vê coisas como
aquelas...vocês sabem...provocam um efeito...'
Assustado, entupi a boca com
mingau. Fiquei com medo de deixar escapar minha raiva. Velhote
maçante e estúpido de nariz vermelho!
Já era tarde quando senti sono.
Embora estivesse zangado com o velho Cotter por ter se referido a mim
como uma criança, tentei pensar no significado de suas frases
inacabadas. Na escuridão do meu quarto, imaginei ver o rosto
cadavérico do paralítico. Enfiei minha cabeça debaixo do cobertor
e tentei pensar na época de natal. Porém aquele rosto acinzentado
ainda me perseguia. Murmurava, e eu entendi que ele desejava
confessar algo. Senti como se minha alma voltasse para algum lugar
aprazível e viciante, e lá estava de novo esperando por mim.
Começou sussurrando, e eu me perguntava por que aquilo sorria
continuamente com aqueles lábios úmidos de cuspe. Mas quando
lembrei que ele tinha morrido paralítico, percebi que eu estava
sorrindo da mesma forma como se fosse absolvê-lo de seus pecados
simoníacos.
Na manhã seguinte após o desjejum,
fui ver a casinha que ficava na rua Great Britain. Era uma loja
modesta, registrada com o nome impreciso de Drapery.
Vendia calçados de crianças e sombrinhas; e costumava ter um cartaz
pendurado na janela anunciando: Conserto
de sombrinhas.
No momento, através das persianas levantadas, nenhum anúncio
estava visível. Um bouquet de papel crepe estava pendurado na
porta. Duas mulheres bem simples e um jovem mensageiro liam o cartão
espetado no bouquet. Eu também me aproximei e li:
1º de julho de 1895
Reverendo James Flynn (antigo pároco da Igreja de Santa
Catarina, Rua Meath), idade de sessenta e cinco anos.
R.I.P.
Lendo o cartão, fiquei convencido de que a morte realmente ocorreu e
confuso comigo mesmo. Se ele não estivesse morto, eu iria ao
quartinho escuro atrás da loja e o encontraria sentado em sua
poltrona perto da lareira, quase sufocando em seu sobretudo. Talvez
minha tia tivesse me dado um pacote de torradas para levar e tal
presente o teria despertado de sua soneca. Era sempre eu que
esvaziava o pacote dentro de sua caixa preta de rapé, pois suas mãos
tremiam muito e não deixavam que ele o fizesse sem espalhar metade
do rapé no chão. Mesmo quando ele erguia a mão enorme e trêmula
até o nariz, pequenas nuvens de fumaça fugiam por entre seus dedos
acima do sobretudo. Pode ter sido essa constante chuva de rapé que
deu o tom esverdeado em suas velhas roupas sacerdotais e escurecido o
cachecol vermelho sempre manchado dos grãos acumulados na semana,
que ele tentava inutilmente escovar.
Eu desejava entrar e o encontrar, mas não tive coragem de bater.
Fui me afastando lentamente, e enquanto caminhava do lado ensolarado
da rua, lí todos os anúncios espalhafatosos nas vitrines das lojas.
Estranhei que o dia não parecesse triste, eu também não estava e
fiquei aborrecido ao descobrir em mim mesmo uma sensação de
liberdade, como se a morte dele tivesse me livrado de alguma coisa.
Queria saber a razão dessa sensação, afinal, como disse meu tio na
noite anterior, o falecido tinha me ensinado muita coisa. Ele tinha
estudado na Faculdade Irlandesa em Roma e me ensinou a correta
pronúncia do latin, contou histórias sobre as catacumbas e sobre
Napoleão Bonaparte, discorreu sobre os significados das diferentes
cerimônias das missas e sobre as várias vestimentas dos padres.
Algumas vezes se divertia colocando questões difíceis para mim,
perguntando-me o que alguém deveria fazer em certas circunstâncias
ou se tais e tais pecados eram mortais, veniais ou somente
imperfeições. Seus questionamentos me mostraram como eram
complexas e misteriosas certas práticas da Igreja que eu sempre
tinha considerado como atos símples. As funções dos padres
relativas a Eucaristia e o sigilo do Confessionário pareciam tão
solenes que eu me perguntava como alguém achava coragem para
realiza-las; e eu não fiquei surpreso quando ele me contou que os
fundadores da Igreja tinham escrito livros tão grossos quanto uma
lista telefônica e rigorosamente impressas tais como as notas legais
dos jornais, explicando todas aquelas intrincadas questões. Sempre
que eu pensava sobre isso, não achava respostas ou somente algumas
bobas e hesitava, então ele costumava sorrir e balançar a cabeça
duas ou três vezes.
De vez em quando ele me colocava nos preparativos de missas das quais
tinha me envolvido emocionalmente ; e enquanto eu tagarelava, ele
sorria pensativamente balançando a cabeça, e então aspirava
grandes porções de rapé, em cada uma das narinas.
Quando sorria, exibia seus grandes dentes manchados e deixava a
língua cair sobre o lábio inferior – um hábito que no início de
nossa relação, antes de o conhecer bem, me causava certo
desconforto.
Enquanto ia caminhando debaixo do sol, lembrei das palavras do velho
Cotter e tentei trazer de volta à memória o que tinha acontecido no
meu sonho. Lembrava de ter notado longas cortinas de veludo e um
lampião antigo. Senti que tinha estado em algum lugar muito
distante, de costumes estranhos – talvez na Pérsia, pensei...Mas
não conseguia lembrar de como o sonho terminava.
No final da tarde minha tia me levou com ela para visitar a casa onde
acontecia o velório. O sol já tinha sumido; mas as vidraças que
davam para o oeste refletiam o brilho amarelado de um grande conjunto
de nuvens.
Nannie nos recebeu no hall; e como seriam inadequados cumprimentos
efusivos, apenas apertaram as mãos. A velha senhora levantou a
cabeça, com o queixo apontando para o andar de cima e quando minha
tinha acenou concordando seguiu na nossa frente em direção à
estreita escada, sua cabeça inclinada mal passava da altura do
corrimão. Parou ao chegar no primeiro andar e acenou nos
encorajando a passar pela porta da sala do velório. Minha tia
entrou e a mulher vendo que eu hesitava, começou a me acenar
repetidamente com a mão.
Eu entrei quase que na ponta dos pés. Através da fina cortina de
renda, uma luz de um dourado sombrío empalidecia a chama das velas
dentro da sala. Ele estava dentro de um caixão. Com um gesto de
Nannie, nos ajoelhamos aos pés da cama. Eu fingi orar mas não
conseguia me concentrar por causa do murmurar das velhas senhoras.
Notei como a borda de sua saia estava desajeitada e a bota de pano
toda amassada de um dos lados. A imagem fantasiosa de que o velho
padre estava sorrindo dentro do caixão, passou pela minha cabeça.
Mas não. Quando nos levantamos e fomos até a cabeceira da cama, eu
vi que ele não estava sorrindo. Estava lá deitado, solene e
elegantemente vestido como que pronto para o altar, suas mãos
enormes quase não seguravam um cálice. Seu rosto tinha uma
expressão severa, acinzentada e pesada, com cavernosas narinas
negras e cercadas por esparsas áreas de pele branca. Havia um forte
cheiro na sala – as flores.
Fizemos o sinal da cruz e saímos. Lá embaixo, em um pequeno cômodo,
encontramos Eliza sentada em sua poltrona. Fui em direção à
minha cadeira no canto enquanto Nannie foi até um aparador e trouxe
uma jarra de sherry e alguns copos de vinho. Colocou tudo em uma
mesa e nos convidou. Então, a pedido de sua irmã, começou a
encher os copos e a nos servir. Recusei quando me ofereceu biscoitos,
pensei que faria muito barulho ao comê-los. Acho que pareceu
desapontada com minha recusa, então foi sentar no sofá atrás de
sua irmã. Ninguém falava: todos olhávamos para uma lareira vazia.
Minha tia esperou até o momento em que Eliza soltou um suspiro,
então falou:
'Ah, bem...ele se foi para um mundo melhor.'
Eliza suspirou novamente e acenou com a cabeça concordando.
Minha tia tamborilou com os dedos no copo antes de bebericar um
pouquinho, e perguntar:
'Ele estava...em paz?'
'Oh, bastante tranquilo, senhora,' disse Eliza 'Você não poderia
dizer quando parou de respirar. Ele teve uma boa morte. Deus seja
louvado.'
'E no mais...?'
'Padre O'Rourke esteve com ele na terça-feira dando a extrema-unção,
trazendo conforto e tudo mais.'
'Ele sabia então?'
'Estava bem resignado.'
'Ele parece bem resignado,' disse minha tia.
'A mulher que preparou o corpo também disse. Falou que ele parecia
estar dormindo, transmitia muita paz e resignação. Ninguém
pensaria que era um lindo cadáver.'
'Sim, de fato,' minha tia concordou, bebericou mais um pouquinho de
seu copo e disse:
'Bem, Senhorita Flynn, deve ser muito reconfortante para você saber
que fez tudo que podia e eu tenho que dizer que vocês foram muito
gentis com ele.'
Eliza ajeitou delicadamente o vestido por cima de seu joelho.
'Ah, pobre James!' disse. 'Deus sabe que nós fizemos tudo que
podíamos, apesar de sermos tão pobres – não queríamos vê-lo
sentindo falta de nada enquanto estivesse aqui.'
Nannie tinha a cabeça apoiada no encosto do sofá e parecia ter
caído no sono.
'Pobre
Nannie,' disse Eliza olhando para ela, 'apagou. Todo o trabalho que
tivemos, ela e eu, ajudando a mulher a lavá-lo, preparando-o e então
o caixão e os arranjos para a missa na capela. Não fosse pelo Padre
O'Rourke eu não sei se faríamos tudo. Foi ele que trouxe todas as
flores, dois castiçais e escreveu a nota de óbito para o
Freeman's General e tomou a seu
cargo toda a papelada do cemitério e o seguro do pobre James.'
'Quanta bondade da parte dele, não?' disse minha tia.
Eliza fechou os olhos e balançou a cabeça lentamente
'Ah, não existem amigos como os velhos amigos,' disse, 'quando tudo
já foi dito e feito, não aparecem amigos em quem confiar.'
'De fato, isso é verdade,' falou minha tia. 'e eu estou certa que
ele agora foi para sua recompensa eterna e não esqueceu de vocês e
toda sua gentileza para com ele.'
'Ah, pobre James!' Eliza continuou. 'Ele não foi um estorvo para
nós. Você não iria ouvi-lo dentro de casa mais do que agora.
Ainda assim, eu sinto que ele se foi e tudo...'
'E quando tudo isso passar, vocês sentirão falta dele,' disse minha
tia.
'Eu sei disso, não poderei levar o caldo de carne dele, e nem a
senhora poderá mais lhe enviar o rapé. Ah, pobre James!'
Ela parou de falar, parecia que estava se comunicando com o passado,
e então disse cuidadosamente:
'Caso interesse, eu notei que algo o incomodava nos últimos
instantes. Quando trouxe a sopa, o encontrei desfalecido na
poltrona, a boca aberta e o breviário no chão.'
Ela encostou um dedo no nariz, franziu as sobrancelhas e continuou:
'Mas ele só ficava repetindo que antes do verão acabar, queria
tirar um bendito dia para ver novamente a velha casa onde nós todos
tínhamos nascido em Irishtown e que iria nos levar com ele, eu e
Nannie. Se ao menos pudéssemos ter uma dessas novas carruagens que
não fazem barulho das quais Padre O'Rourke nos falou, aquelas que
têm rodas 'reumáticas', baratinhas por um dia – ele disse, as do
Johnny Rush's, que levasse nós trê em uma tarde de domingo. Ele só
pensava nisso...Pobre James!'
'O Senhor tenha piedade da alma dele!' consolou-a minha tia.
Eliza pegou seu lenço e enxugou os olhos e voltou a guardá-lo no
bolso; ficou olhando para a grelha vazia sem nada falar.
'Ele sempre foi excessivamente meticuloso,' ela falou. 'Os deveres
do sacerdócio foram sacrificantes para ele. E então sua vida foi,
pode-se dizer, de muita aflição.'
'Sim,' minha tia concordou. 'Ele se tornou um homem decepcionado.
Você podia ver isso.'
O silêncio tomou conta da pequena sala e, protegido por ele, me
aproximei da mesa e provei do meu sherry. Então, silenciosamente,
retornei à cadeira no canto.
Esperamos respeitosamente que ela quebrasse o silêncio: e depois de
uma longa pausa Eliza falou bem devagar:
'Aqui está o cálice que ele quebrou...Isto foi o início. É claro
que disseram que estava tudo bem, que não tinha nada dentro, quer
dizer. Mas mesmo assim...Falaram que era culpa do rapaz. Mas pobre
James, estava tão nervoso. Deus seja misericordioso com ele!'
'E o que foi que houve?' perguntou minha tia. 'Eu escutei algo a
respeito...'
Eliza assentiu com a cabeça.
'Isto perturbou sua mente,' disse. 'Depois disto ele começou a se
lastimar, não falava com ninguém e resmungando a respeito, consigo
mesmo. Então uma noite fizeram uma ligação para ele, mas não o
encontraram em lugar nenhum. Procuraram por todo lado, mesmo assim
não conseguiram vê-lo. Daí o sacristão sugeriu tentar a capela.
Levaram a chave e abriram, o sacristão e o Padre O'Rourke e um outro
padre que estava por lá trouxe a luz para procurá-lo... E sabia que
lá estava ele sentado sozinho no escuro de seu confessionário, bem
acordado e meio que rindo baixinho consigo mesmo?
Ela se calou de repente, como se fosse escutar algo. Eu também
escutei; mas não havia som nenhum lá: e eu sabia que o velho padre
ainda estava deitado em seu caixão como nós o tínhamos visto,
solene e pesado em morte, e um cálice inútil em seu peito.
Eliza continuou:
'Bem acordado e rindo consigo mesmo...então, é claro, quando viram
isso, logo pensaram que tinha alguma coisa errada com ele...'
UM ENCONTRO
Foi Joe Dillon quem nos apresentou ao mundo do Velho Oeste. Joe possuía uma "biblioteca" sobre o assunto! Composta de dois livros: Union Jack e Pluck and the Halfpenny Marvel. Todas as tardes após a escola, nós encontrávamos no quintal da casa de Joe, onde aconteciam as batalhas. Ele e o irmão gorducho , Leo "preguiça", ocupavam o barracão do estábulo, enquanto nós tentávamos tomar o local. Às vezes o gramado servia de palco para as guerras. Mas por melhor que brigássemos, nos nunca vencíamos o cerco, e todos os nossos esforços terminavam com Joe Dillon fazendo a dança da vitória. Os pais dele saiam sempre às oito horas e a casa ficava com o agradável perfume da Sra. Dillon. Joe brincava como se fosse uma guerra de verdade, e nós éramos bem mais jovens e tímidos. Ele dava voltas no jardim, com uma espécie de panela na cabeça e batendo numa lata com os punhos, gritando:"Ya!yaka!yaka!yaka!".
Ninguém acreditou quando espalharam que o índio violento tinha vocação para a vida religiosa. Contudo era a mais pura verdade.
Um sensação de rebeldia difundiu-se entre nós. E sob sua influência, abandonamos diferenças de cultura e comportamentos. Juntos, começamos a nos transformar, alguns por rebeldia, alguns por diversão, e até por medo, e entre esses últimos, os "índios" briguentos, que não queriam demonstrar fraqueza ou falta de virilidade. As aventuras descritas nos livros de faroeste estavam muito distantes de minha realidade, mas ao menos serviram para ampliar meus horizontes. Sempre gostei mais das histórias de detetive, onde lindas e sensuais garotas provocavam minha imaginação. Essas literaturas, embora despretensiosas, circulava clandestinamente pela escola. Certa ocasião, quando Padre Butler dava uma aula sobre História Romana, o atrapalhado Leo Dillon foi apanhado com uma cópia de suas histórias sobre o velho oeste.
'Esta página ou a outra? Levante-se Dillon! - o padre começou a ler - " Mal tinha amanhecido..." prossiga rapaz! Que dia é esse? Você estudou? Oque você tem no bolso?'
Nossos corações dispararam e, sem exceção, todos fizemos caras de inocentes quando Leo exibiu o livro que o padre começou a folhear atentamente.
'Que lixo é esse?' perguntou, 'O Chefe Apache'! É isso que você tem lido ao invés de estudar a História romana? Nunca mais quero encontrar essas coisas na escola. O autor disto aqui foi um infeliz que escrevia por míseros trocados para a bebida! Estou surpreso por um rapaz educado como você, ler isso! Poderia entender se estivéssemos...em uma escola pública! Rapaz, vou lhe dar um sério aviso: volte aos seus deveres ou...'
Essa censura firme teve o efeito de tirar muito da glória do velho oeste, e a cara assustada do gorducho Leo, me chamou de volta às minhas responsabilidades. Mas esse efeito durava pouco, e quando longe da influência da escola, aquelas sensações de rebeldia e fuga que as histórias pareciam proporcionar, voltavam forte. As brincadeiras de guerra ao final da tarde acabaram se tornando tão enfadonhas quanto a rotina escolar das minhas manhãs; eu ansiava por participar de aventuras reais. Porém, refleti, a realidade que eu desejava não acontecia para pessoas que ficavam enfurnadas dentro de casa: deveriam ser buscadas no mundo lá fora.
As férias de verão estavam bem próximas quando meti na cabeça que, nem que fosse só por um dia, mandaria às favas aquela chatice de vida escolar. Junto com Leo Dillon e um outro garoto chamado Mahony, planejei um dia para matarmos aula. Cada um de nós economizara alguns poucos trocados, cerca de seis pences. Nos encontramos às dez da manhã na ponte do canal. A irmã mais velha de Mahony escrevera uma carta solicitando que ele fosse dispensado da escola; o irmão de Leo justificaria a ausência dele com a desculpa de uma doença repentina. O plano era caminhar ao longo da estrada Wharf até chegarmos nos navios, daí, atravessar numa balsa e caminhar para bisbilhotar a Pigeon House¹³.
Leo Dillon tinha medo de que encontrássemos o padre Butler, ou qualquer conhecido da escola; porém, muito tranquilo, Mahony perguntou o que o padre poderia estar fazendo por aquelas bandas da Pigeon House. Assim, mais seguros, eu dei início ao primeiro estágio do plano e coletei os trocados de meus companheiros, mostrando-lhes também as minhas moedas. Na véspera, ao iniciarmos os preparativos, estávamos um tanto empolgados; gesticulávamos em meio à risadas, enquanto Mahony declarava:
"Não vejo a hora de chegar amanhã, camaradas!"
Aquela noite eu mal consegui dormir. Logo pela manhã fui o primeiro a chegar na ponte do encontro, até porque era quem morava mais perto do lugar.
Tratei de esconder meus livros numa moita de mato alto no jardim, sabendo que ninguém nunca bisbilhotava por ali e apressei-me ao longo da margem do canal, era uma manhã ensolarada de início de junho. Tratei de sentar na mureta de pedra e fiquei admirando meus frágeis sapatos de lona que, na noite anterior, dera um trato no capricho. Me distraí com a visão dos dóceis cavalos que puxavam bondes cheios de pessoas colina acima. Todos os galhos das árvores altas que circundavam a alameda estavam enfeitados com luzinhas em forma de folhas verdes que o sol refletia alegremente na água. O granito das pedras da ponte estava mais quente e eu tive que começar a me abanar para refrescar um pouco a cabeça. A sensação era de felicidade.
Após ficar sentado ali por cerca de cinco ou dez minutos, vi o casaco cinza de Mahony se aproximando. Sorrindo, ele subia a colina, e logo se aboletou na mureta da ponte, ao meu lado. Enquanto esperávamos ele retirou um estilingue que enchia o bolso interno da jaqueta e explicou sobre os aperfeiçoamentos que fizera naquilo. Perguntei por que tinha trazido aquele negócio, ao que ele revelou pretender se divertir com os pássaros. Mahony usava e abusava das gírias, e se referia ao padre Butler como velhote buscapé. Esperamos lá por mais de quinze minutos, e mesmo assim nem sinal de Leo Dillon. Por fim, Mahony saltou da mureta e disse:
'Vamos embora. Eu sabia que o gordinho ia fuder com tudo.'
'Mas, e os trocados dele...?' perguntei.
'Perdeu,' foi a resposta. 'E tanto melhor para a gente - em vez de um trocado, ficamos com trocado e meio.'
Caminhamos ao longo da estrada marginal norte até alcançarmos a Vitriol Works e então dobramos à direita para a Wharf Road. Mahony, assim que ficamos fora do alcance dos olhares alheios, começou a bancar o índio. Começou a perseguir um bando de garotas maltrapilhas, brandindo o estilingue vazio, e assim que dois moleques esfarrapados começaram a xingar-nos e a atirar pedras em nossa direção, ele declarou que devíamos dar o troco aos agressores. Eu falei que não, afinal os dois guris eram bem mirrados; portanto, tratamos de seguir adiante mas ainda sob os gritos do bando de crianças mendigas:"caga hóstias!, caga hóstias!". Pensando que éramos protestantes, pois Mahony, de pele mais escura, usava um boné com o símbolo do clube de críquete. Tratamos de logo fazer um cerco assim que alcançamos o caminho de pedras da Smothing Iron que margeava a Wharf. Não ia dar certo! Precisávamos estar em pelo menos três para tal propósito. Descarregamos toda nossa frustração no Leo, lembrando do fudido que ele era e quantos ele conseguiria do Senhor Ryan às três horas.
Ninguém acreditou quando espalharam que o índio violento tinha vocação para a vida religiosa. Contudo era a mais pura verdade.
Um sensação de rebeldia difundiu-se entre nós. E sob sua influência, abandonamos diferenças de cultura e comportamentos. Juntos, começamos a nos transformar, alguns por rebeldia, alguns por diversão, e até por medo, e entre esses últimos, os "índios" briguentos, que não queriam demonstrar fraqueza ou falta de virilidade. As aventuras descritas nos livros de faroeste estavam muito distantes de minha realidade, mas ao menos serviram para ampliar meus horizontes. Sempre gostei mais das histórias de detetive, onde lindas e sensuais garotas provocavam minha imaginação. Essas literaturas, embora despretensiosas, circulava clandestinamente pela escola. Certa ocasião, quando Padre Butler dava uma aula sobre História Romana, o atrapalhado Leo Dillon foi apanhado com uma cópia de suas histórias sobre o velho oeste.
'Esta página ou a outra? Levante-se Dillon! - o padre começou a ler - " Mal tinha amanhecido..." prossiga rapaz! Que dia é esse? Você estudou? Oque você tem no bolso?'
Nossos corações dispararam e, sem exceção, todos fizemos caras de inocentes quando Leo exibiu o livro que o padre começou a folhear atentamente.
'Que lixo é esse?' perguntou, 'O Chefe Apache'! É isso que você tem lido ao invés de estudar a História romana? Nunca mais quero encontrar essas coisas na escola. O autor disto aqui foi um infeliz que escrevia por míseros trocados para a bebida! Estou surpreso por um rapaz educado como você, ler isso! Poderia entender se estivéssemos...em uma escola pública! Rapaz, vou lhe dar um sério aviso: volte aos seus deveres ou...'
Essa censura firme teve o efeito de tirar muito da glória do velho oeste, e a cara assustada do gorducho Leo, me chamou de volta às minhas responsabilidades. Mas esse efeito durava pouco, e quando longe da influência da escola, aquelas sensações de rebeldia e fuga que as histórias pareciam proporcionar, voltavam forte. As brincadeiras de guerra ao final da tarde acabaram se tornando tão enfadonhas quanto a rotina escolar das minhas manhãs; eu ansiava por participar de aventuras reais. Porém, refleti, a realidade que eu desejava não acontecia para pessoas que ficavam enfurnadas dentro de casa: deveriam ser buscadas no mundo lá fora.
As férias de verão estavam bem próximas quando meti na cabeça que, nem que fosse só por um dia, mandaria às favas aquela chatice de vida escolar. Junto com Leo Dillon e um outro garoto chamado Mahony, planejei um dia para matarmos aula. Cada um de nós economizara alguns poucos trocados, cerca de seis pences. Nos encontramos às dez da manhã na ponte do canal. A irmã mais velha de Mahony escrevera uma carta solicitando que ele fosse dispensado da escola; o irmão de Leo justificaria a ausência dele com a desculpa de uma doença repentina. O plano era caminhar ao longo da estrada Wharf até chegarmos nos navios, daí, atravessar numa balsa e caminhar para bisbilhotar a Pigeon House¹³.
Leo Dillon tinha medo de que encontrássemos o padre Butler, ou qualquer conhecido da escola; porém, muito tranquilo, Mahony perguntou o que o padre poderia estar fazendo por aquelas bandas da Pigeon House. Assim, mais seguros, eu dei início ao primeiro estágio do plano e coletei os trocados de meus companheiros, mostrando-lhes também as minhas moedas. Na véspera, ao iniciarmos os preparativos, estávamos um tanto empolgados; gesticulávamos em meio à risadas, enquanto Mahony declarava:
"Não vejo a hora de chegar amanhã, camaradas!"
Aquela noite eu mal consegui dormir. Logo pela manhã fui o primeiro a chegar na ponte do encontro, até porque era quem morava mais perto do lugar.
Tratei de esconder meus livros numa moita de mato alto no jardim, sabendo que ninguém nunca bisbilhotava por ali e apressei-me ao longo da margem do canal, era uma manhã ensolarada de início de junho. Tratei de sentar na mureta de pedra e fiquei admirando meus frágeis sapatos de lona que, na noite anterior, dera um trato no capricho. Me distraí com a visão dos dóceis cavalos que puxavam bondes cheios de pessoas colina acima. Todos os galhos das árvores altas que circundavam a alameda estavam enfeitados com luzinhas em forma de folhas verdes que o sol refletia alegremente na água. O granito das pedras da ponte estava mais quente e eu tive que começar a me abanar para refrescar um pouco a cabeça. A sensação era de felicidade.
Após ficar sentado ali por cerca de cinco ou dez minutos, vi o casaco cinza de Mahony se aproximando. Sorrindo, ele subia a colina, e logo se aboletou na mureta da ponte, ao meu lado. Enquanto esperávamos ele retirou um estilingue que enchia o bolso interno da jaqueta e explicou sobre os aperfeiçoamentos que fizera naquilo. Perguntei por que tinha trazido aquele negócio, ao que ele revelou pretender se divertir com os pássaros. Mahony usava e abusava das gírias, e se referia ao padre Butler como velhote buscapé. Esperamos lá por mais de quinze minutos, e mesmo assim nem sinal de Leo Dillon. Por fim, Mahony saltou da mureta e disse:
'Vamos embora. Eu sabia que o gordinho ia fuder com tudo.'
'Mas, e os trocados dele...?' perguntei.
'Perdeu,' foi a resposta. 'E tanto melhor para a gente - em vez de um trocado, ficamos com trocado e meio.'
Caminhamos ao longo da estrada marginal norte até alcançarmos a Vitriol Works e então dobramos à direita para a Wharf Road. Mahony, assim que ficamos fora do alcance dos olhares alheios, começou a bancar o índio. Começou a perseguir um bando de garotas maltrapilhas, brandindo o estilingue vazio, e assim que dois moleques esfarrapados começaram a xingar-nos e a atirar pedras em nossa direção, ele declarou que devíamos dar o troco aos agressores. Eu falei que não, afinal os dois guris eram bem mirrados; portanto, tratamos de seguir adiante mas ainda sob os gritos do bando de crianças mendigas:"caga hóstias!, caga hóstias!". Pensando que éramos protestantes, pois Mahony, de pele mais escura, usava um boné com o símbolo do clube de críquete. Tratamos de logo fazer um cerco assim que alcançamos o caminho de pedras da Smothing Iron que margeava a Wharf. Não ia dar certo! Precisávamos estar em pelo menos três para tal propósito. Descarregamos toda nossa frustração no Leo, lembrando do fudido que ele era e quantos ele conseguiria do Senhor Ryan às três horas.
Então nos aproximamos mais do rio. Sei que ficamos por muito tempo flanando ao longo das ruas barulhentas cercadas por paredes de pedra, assistindo o trabalho dos guindastes e dos motores, vez por outra sendo expulsos pelos gritos dos motoristas dos carrinhos de transporte que passavam gemendo e rangendo. Já era por volta de meio-dia quando alcançamos as docas e, todos os trabalhadores pareciam ter se atirado aos seus almoços. Tínhamos trazido dois enormes pães de groselha, então, perto de um dos atracadouros metálico da margem, nos acomodamos para comer. Nos distraímos agradavelmente com o espetáculo proporcionado pelo movimento do comércio da cidade.
13 - originalmente um forte, depois uma estalagem, e por fim, uma estação de força.
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