A secreta Torre de Babel bem à vista de todos
"Clickbait"
não pode ser traduzido para outro idioma. Sabe por quê? Porque
nesta plataforma da palavra - a Internet - o idioma inglês é o rei.
O que o tempo trouxe
Eu
sou francês e, na primeira série, a versão de Chapeuzinho
vermelho, dos irmãos Grimm, era leitura obrigatória. Minha
professora, certa vez, nos contou que os irmãos Grimm a escreveram em
alemão, e o que estávamos lendo ela chamou de "uma versão
traduzida". Isso me surpreendeu, eu não tinha ideia do que
"traduzida" significava naquela época, mas soava como
Transformers e isso era excitante!
Anos
depois, descobri que este conto foi originalmente escrito em francês
por Charles Perrault. Significava que aquilo passara do francês para
o alemão, e depois para o francês novamente. "Eu não sei
falar alemão", meu eu de dez anos pensou em voz alta na
cantina, "e se o que eu li quando criança não fosse a história
certa. Eu nem saberia, mesmo se tivesse lido a versão alemã! ”
Acontece
que eu estava certo em me preocupar. Encontrei tantas versões da
estorinha que até perdi a conta. Tradução se parecia com os
Transformers - legal à primeira vista, mas decepcionante quando se
testemunha o terrível enredo em torno dela.
Mais
tarde, percebi que diferentes versões de contos de fadas não eram
incomuns, mas isso me fez pensar. Um sem número estórias foram
escritas e reescritas em tantas versões e linguagens diferentes que
podemos questionar a relevância do original. Como poderia um marco
cultural ser criado a partir de uma apropriação inidônea do
material original? O que nos levou a esse ponto?
O Oeste Selvagem
A
colonização é a responsável pela lacuna entre o que é tradução
e o que a tradução algumas vezes parece. A tudo isso se soma o
colonizador impondo sua língua e cultura aos colonizados, o que
infelizmente criou uma relação de dominação e submissão entre
eles, e que ainda transparece hoje.
Muitas
línguas estão morrendo, algumas estão lutando, mas acreditamos que
apenas uma dúzia delas sobreviverá. Esta dúzia é majoritariamente
composta por línguas europeias e americanas.
Diz-se
que a tradução é a comunicação do significado de um idioma de
origem para um idioma de destino. Uma definição muito banal, mas
correta, que não parece se traduzir bem na prática.
Em
termos de cultura e linguagem, o Ocidente Dominante é agora, supostamente, o centro do mundo, a Grande Fonte Original; e o mundo
dominado - antigas colônias - são meras traduções desta Grande
Fonte Original.
Uma
coisa perigosa acontece com esse tipo de pensamento: um complexo
de superioridade fomentado pelos próprios tradutores.
Les
Belles Infidèles (literalmente
The Beautiful Unfaithful) foi um movimento francês do século 17 que influencio a tradução por um longo tempo. Para agradar e conformar-se
com o decoro da época, alguns trabalhos foram renovados e
“aperfeiçoados” por tradutores que estavam um tanto convencidos
da superioridade de sua própria língua. O objetivo destas traduções
era tornar qualquer trabalho esteticamente mais agradável, não
importando o tom da peça original.
Podemos
dar uma olhada em Edward Fitzgerald - um dos maiores tradutores
ingleses de sua época. Ele, certa vez, acusou os persas de
incompetência artística, e sugeriu que suas poesias se tornassem
arte apenas quando traduzidas para o inglês. Apesar de ser um
tradutor com um excelente conjunto de habilidades, - juntamente com
muitos outros tradutores - considerou sua língua e cultura como
superiores.
A
tradução tornou-se uma ferramenta para afirmar a supremacia da
cultura européia, ao mesmo tempo em que estupidificava os
colonizados.
Esse
é um exemplo de apropriação cultural de que nem sempre se fala - o
ato de tomar uma cultura e a modificar sem que os consumidores tenham
sequer a oportunidade de saber que o viés preconceituoso entrou em
cena no processo de tradução.
Não
é surpresa que, na época, os trabalhos traduzidos tivessem muito
mais apelo do que os originais. Muitos tradutores promoveram um
comportamento complacente que, inconscientemente, transparecia para
os leitores.
Em
meu pensamento de 6 anos de idade, a tradução era como os
Transformers - poderia destruir grandes marcos culturais em um piscar
de olhos e criar algo novo, mas um tanto quanto estranho.
Babel 2.0
Dizia-se
que nos tempos bíblicos todas as pessoas na Terra falavam a mesma
língua. Um dia, essas pessoas decidiram construir uma cidade, e
depois uma torre que alcançaria o céu. Queriam fazer parte dos
céus, não se contentavam mais em espalhar-se pela face da terra.
Quando Deus viu que o povo era um e falavam apenas uma única língua,
considerou o ato de construir a tal torre como uma blasfêmia,
derrubou a construção e confundiu suas línguas.
As
pessoas acabaram dispersas na face da terra, não mais conseguindo
entender o idioma umas das outras.
Em
nossos dias, podemos ver um homem persa postando uma foto no
Instagram, com legendas em forma de poemas, mostrando um tapete de
Isfahan, lindamente bordado. Graças a isso, a cultura conseguiu se livrar
de intermediários tendenciosos.
A
sociedade em que vivemos atualmente é a mais adequada para a
tradução, e o mais importante: para a conexão cultural. Nunca
fomos mais conscientes da cultura um do outro do que agora.
Nessa
situação, caminhamos numa corda bamba da consciência cultural;
e podemos tropeçar e cair na apropriação cultural. O fato de
que a apropriação cultural é universalmente considerada uma coisa
ruim, mostra-se como um divisor de águas para a tradução. Não se
pode aceitar relações de submissão entre culturas se tal ideia
intrinsecamente expressa a falta de consciência cultural.
Graças
à globalização e à World Wide Web, nossa sociedade é testemunha
de uma mudança cultural constante, em que o domínio de uma cultura
sobre outra é fortemente encorajado a se tornar uma coisa do
passado.
Nesta
era de consciência cultural, a tradução pode voltar ao seu
propósito mais puro. A tradução agora estimula a vontade de saber
mais sobre o idioma de origem - sobre a outra cultura, e isso tem
efeitos no resto do mundo.
A
segunda Torre de Babel está sendo construída por uma quantidade
significativa de povos que falam línguas diferentes. E estamos
colocando nossos corações e almas em entender uns aos outros.
A
tradução é uma parte essencial de nossas vidas que se "esconde
bem à vista". Foi
sempre assim! A única diferença é que afirmar uma supremacia
cultural não é mais um incentivo para a tradução.
Tradução é aquilo que muda tudo para que nada mude.
- Gunter Grass
Entendo
agora porque isso me surpreendeu quando eu tinha 6 anos - A tradução
é o herói meta morfo que impede que tudo desmorone.
Ei,
assim como os Transformers!
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