É um erro sugerir que determinada língua regional não seja “real”
O Festival da Canção Eurovision é muitas vezes considerado como uma espécie de espelho para a Europa. As picuinhas, alianças, cores e estilos - e, acima de tudo - o espetáculo pacífico observado em dezenas de países - representam o melhor e, às vezes, o mais bobo do próspero continente moderno. Uma das rivalidades captadas é entre as línguas europeias. Um acalorado debate recente na Espanha, visando escolher uma música a ser enviada às finais em maio, exibiu outro tipo de disputa linguística: o domínio das línguas nacionais sobre as mal compreendidas regionais.
Os telespectadores espanhóis foram presenteados com o Tanxugueiras, um trio galego e sua música “Terra”. Os apresentadores sinalizaram a primeira contenda com os telespectadores galegos quando, no que parecia algo roteirizado, um deles disse (a título de introdução): “A Bélgica enviou música em uma língua inventada, não uma, mas duas vezes.” Sua colega, em tom de galhofa, esclareceu: "Mas os próximos candidatos a nos representar não inventaram nada." E explicou; a canção foi escrita em uma das línguas regionais que têm status oficial naquela parte do país. Principalmente em galego, falado no noroeste da Espanha, mas incluiu uma expressão bem conhecida ("não há fronteiras") em língua basca, catalã, asturiana, espanhola e espanhol em sinais.
A multidão adorou a melodia e Tanxugueiras levou o voto dos telespectadores. Os dois juízes internacionais também foram conquistados pelo trio. Mas não os espanhóis, cujos votos mudaram a vitória para outra canção (em espanhol). O duplo insulto das brincadeiras dos apresentadores e dos juízes sobrepondo-se à escolha popular incendiaram as redes sociais galegas. Nossa linguagem, queixaram-se os galegos, não é de modo algum «inventada», descende do latim e é tão antiga quanto o espanhol. Alguns especularam que os juízes espanhóis simplesmente não podiam aceitar enviar uma música que não estava em espanhol para a final.
A piada sobre línguas inventadas provavelmente derivou mais da ignorância do que da malícia. A Europa está cheia de línguas regionais cujo status parece nebuloso para aqueles que pensam que a única língua “real” de um país é a oficial, nacional. As variedades locais são chamadas de dialeto, argot, patois, jargão, gíria ou similar, mesmo que os linguistas estejam convencidos de que algumas são línguas distintas. O teste mais comum do linguista para essas variantes é se os vizinhos próximos conseguem entendê-las. Se isso é difícil ou impossível, são línguas, não dialetos.
Mas outro critério é inteiramente político: a língua tem uma bandeira, fronteiras e um Estado? Caso contrário, em muitas mentes, ela existe em uma espécie de submundo de línguas não reais. O galego pode ter status oficial em sua região de origem, mas em outros lugares da Espanha é frequentemente visto como uma curiosidade, em vez de uma língua "real" como o espanhol.
Galego, por acaso, apresenta outro problema. Muitas pessoas consideram-no como fazendo parte do português, um debate abordado num recente livro (em português) de Marco Neves, da Universidade Nova de Lisboa. Neves acha que o galego pode ser considerado o pai do português. Mas a questão de se o galego é distinto é algo diferente de se é "real". Se, de fato, é realmente português - e deveria ser chamado de galego-português, um nome que algumas pessoas preferem - então é uma das maiores línguas do mundo, falada por centenas de milhões. Se for separado - e muitos portugueses podem ter dificuldade em entendê-lo, apesar das profundas semelhanças - então é uma língua regional única. Mas, em ambos os casos, não merece, tanto quanto o espanhol, ser comparada com parvoíces inventadas.
Os concursos de indicações à Eurovision continuam. A França, para seu crédito, já enviou obras em línguas regionais (corso e bretão). A Ucrânia ganhou em 2016 com uma indicação cantada em parte no tártaro da Crimeia. Mas esse tipo de reconhecimento é uma raridade. A Europa tem muitas línguas - o catalão e o Cornish, Sardinian e Sorbian, Frisian e Friulian - que contam com dezenas de milhões de falantes e são protegidas, em teoria, por constituições nacionais e por norma europeia, mas que necessitam constantemente de chamar a atenção. Quanto mais seus defensores buscam reconhecimento, mais alguns falantes de línguas nacionais os tratam como obsessivos ou excêntricos.
O concurso de música, bem famoso, não apenas contou com canções em línguas totalmente inventadas de forma elaborada, mas também teve vencedoras com títulos como “Boom Bang-a-Bang”, “Ding-a-Dong” e “Diggi-Loo Diggi-Ley”. A própria Espanha assumiu a coroa em 1968 com “La, la, la”. O ar de absurdo não seria intensificado por mais países enviarem canções nas veneráveis línguas minoritárias da Europa.
Fonte: Uma língua sem bandeira e Estado ainda é uma língua | The Economist